Fonte (-)Menor  (+)Maior Versão para
Impressão
 
 
Criando filhos seguros e articulados

Outliers - Fora de série, Malcolm Gladwell, 2008, Editora Sextante
 
Então, de onde vem algo como a inteligência prática? Conhecemos a origem da inteligência analítica. É algo que - ao menos em parte - está nos genes. Mas a destreza social é construída por conhecimento. É um conjunto de capacidades que precisam ser aprendidas. Elas têm origem em algum lugar - e é no ambiente familiar que parecemos desenvolver essas atitudes e aptidões.

Talvez a melhor explicação disponível desse processo tenha sido apresentada pela socióloga Annette Lareau, da Universidade de Maryland. Anos atrás, ela realizou um estudo fascinante sobre um grupo de alunos da terceira série. Lareau selecionou crianças negras e brancas de lares ricos e pobres, provenientes de basicamente 12 famílias. Junto com sua equipe, visitou cada família pelo menos 20 vezes, por horas a fio. Ela e os assistentes pediram aos voluntários que os tratassem como se fossem "o cachorro da casa" e os acompanharam a igreja, a jogos de futebol e a consultas médicas com um gravador numa das mãos e um caderno de notas na outra.

Poderíamos esperar que, passando um período tão prolongado com 12 famílias, eles obteriam 12 orientações distintas sobre crianças - haveria as pais rigorosos e os pais sem muita autoridade, os superenvolvidos e os desligados, e assim par diante. O que Lareau descobriu, porém, foi algo bem diferente. Parecia haver apenas duas "filosofias" de educação de filhos, e elas se distinguiam basicamente de acordo com a classe social. Os pais mais ricos criavam as crianças de um modo, enquanto os pais mais pobres adotavam outro método.

Eram os pais das classes econômicas mais altas que mais se envolviam no tempo livre dos filhos - levavam as crianças de uma atividade para outra, perguntavam sobre seus professores, treinadores e colegas de time. Um dos meninos ricos que Lareau acompanhou jogava numa equipe de beisebol, em dois times de futebol e num time de basquete no verão, além de fazer natação, tocar numa orquestra e aprender piano. Esse tipo de programação intensiva praticamente não existia na vida das crianças pobres. Para elas, brincar não era jogar futebol duas vezes por semana. Era inventar jogos na rua, com os irmãos e amigos do bairro. O que elas faziam era considerado pelos pais algo a parte do mundo adulto, sem grandes consequências.

Uma menina de urna família operaria - Katie Brindle - cantava num cora após as aulas. Mas ela ingressou nessa atividade por conta própria e ia sozinha aos ensaios. Lareau escreveu: o que a Sra. Brindle não faz, embora isso seja rotina para mães da classe média, e considerar o apreço da filha pelo canto um motivo para procurar outros meios de ajudá-la a transformar esse interesse em um talento formal. De modo semelhante, a Sra. Brindle não discute o gosto de Katie por teatro nem se mostra preocupada por não ter dinheiro para incentivar o talento da menina. Em vez disso, ela classifica as capacidades e os interesses da filha como traços de caráter - o fato de cantar e atuar é o que a torna "Katie". A mãe vê as apresentações da filha como "engraçadinhas" e como uma forma de Katie "chamar atenção".

Os pais de classe média discutiam os assuntos com os filhos, ponderando com eles. Não se limitavam a dar ordens. Esperavam que as crianças se manifestassem sobre suas determinações, negociassem seus interesses e questionassem os adultos em posições de autoridade. Quando o desempenho dos filhos não ia bem, os pais mais ricos desafiavam os professores. Intervinham em nome das crianças. Uma menina que Lareau acompanhava não fora aceita por um programa para superdotados. A mãe providenciou um novo teste particular, enviou uma petição a escola e conseguiu sua admissão.

Os pais pobres, ao contrário, sentiam-se intimidados pela autoridade. Eles reagiam passivamente e ficavam em segundo plano. Lareau escreve sobre uma mãe de baixa renda: Numa reunião de pais, por exemplo, a Sra. McAllister (que concluiu o nível médio) parece subjugada. A natureza gregária e expansiva que exibe em casa desaparece nesse cenário. Ela se senta encolhida na cadeira e mantem o zíper da jaqueta fechado até o alto. Fica em silencio. Quando a professora informa que Harold não vem entregando os deveres de casa, a Sra. McAllister mostra-se tremendamente surpresa, mas tudo o que diz é "Ele fez em casa." Não questiona a professora nem tenta intervir a favor de Harold. Na sua visão, cabe aos professores cuidar da educação dele. Essa é uma tarefa deles, não sua.

OS DOIS TIPOS DE EDUCAÇÃO

Lareau chama o estilo dos pais de classe média de estratégia do "cultivo orquestrado". É uma tentativa de promover e avaliar os talentos, as opiniões e as habilidades de uma crianças de forma ativa. Os pais de baixa renda, por sua vez, tendem a seguir a estratégia "realização do crescimento natural". Eles assumem sua responsabilidade de cuidar dos filhos, mas deixando-os crescer e se desenvolver por conta própria. Lareau enfatiza que um estilo não é melhor do que outro em termos morais. Na verdade, teve a impressão de que as crianças mais pobres muitas vezes se comportavam melhor, além de serem menos choronas, mais criativas na utilização de seu próprio tempo e mais independentes. No entanto, em termos práticos, o "cultivo orquestrado" apresenta grandes vantagens.

A criança de classe média, com sua agenda sobrecarregada, está exposta a um conjunto de experiências em constante mudança. Ela aprende a trabalhar em equipe e a enfrentar ambientes altamente estruturados. É ensinada também a interagir de forma tranquila com adultos e a se manifestar quando necessário. Nas palavras de Lareau, a criança de classe média aprende o sentido de "ter direito".

"Elas agiam como se tivessem 0 direito de buscar suas preferencias individuais e de lidar ativamente com as interações em ambientes institucionais. Pareciam a vontade nessas situações, mostrando-se abertas a compartilhar informações e a exigir atenção. Entre as crianças de classe média mudar as interações de acordo com seus interesses era uma prática comum", explica Lareau. Elas sabiam as regras. Mesmo na quarta série, as crianças de classe média pareciam agir em seu próprio benefício para ganhas vantagens. Elas exigiam que professores e médicos ajustassem os procedimento para que se tornassem mais convenientes a seus propósitos. As crianças da classe trabalhadora e pobre se caracterizavam por "uma sensação emergente de distância, desconfiança e limitação". Não sabiam fazer o que queriam ou como adaptar aos próprios interesses qualquer ambiente onde estivessem para satisfazer os objetivos.

Em uma cena reveladora, Lareau descreve uma consulta médica a que compareceu com Alex Williams, um menino de nove anos, e sua mãe Christina. Os Williams são profissionais liberais com uma excelente situação financeira.
- Alex, você deveria estar pensando nas perguntas que gostaria de fazer ao médico - diz Christina no carro a caminho do consultório. - Pode perguntar qualquer coisa a ele. Não fique com vergonha. Pergunte o que quiser.
Alex pensa por um minuto e responde:
- Tenho umas brotoejas nas axilas por causa do desodorante.
- É mesmo? Você está falando do desodorante de novo? - ela pergunta.
- Sim.
- Bem, fale com o médico sobre isso.

Segundo Lareau, Christina está ensinando a Alex que ele tem o direito de se manifestar - mesmo estar numa sala com uma figura de autoridade e mais velha, é perfeitamente normal que ele se exprima. Mãe e filho se encontram com o médico, um homem afável de pouco mais de 40 anos. O doutor diz que, em termos de altura, Alexander está no 95º percentil. Alex o interrompe:
- Estou em quê?
- Isso significa que você é mais alto do 95 jovens em cada 100 que estão na faixa dos 10 anos - explica o médico.
- Não tenho 10 anos.
- No gráfico sua idade é essa. Você tem exatamente, vejamos, nove anos e 10 meses. No gráfico se considera o ano mais próximo.

Observe com que facilidade Alex interrompe o médico: "Não tenho 10 anos." O garoto tem seus direitos: a mãe permite essa indelicadeza casual porque quer que ele aprenda a se afirmar com pessoas em posição de autoridade. O médico se dirige a Alex:
- Agora o mais importante. Você gostaria de me perguntar alguma coisa antes que eu faça o exame físico?
- Sim. Tenho umas brotoejas no braço, bem aqui (indica as axilas).
- Vou dar uma olhada quando me aproximar mais para realizar o exame. Verei o que posso fazer. Essas brotoejas doem ou coçam?
- Não, elas não fazem nada.
- Tudo bem, vou examiná-las.

Esse tipo de interação simplesmente não acontecia com as crianças de classe social mais baixa, diz Lareau. Elas eram caladas e submissas e desviavam o olhar. Alex assume o comando do momento. Ao se lembrar de fazer a pergunta que preparou antes, ele obtém a atenção plena do médico, dirigindo-a para um assunto de sua escolha. Fazendo isso, Alex redireciona o equilíbrio do poder dos adultos para si mesmo. A transição é tranquila. Ele está habituado a ser tratado com respeito. É considerado especial, uma pessoa digna da atenção e do interesse dos adultos. Essas são as características-chave da estratégia do "cultivo orquestrado". Alex não "se exibe" durante o exame. Ele se comporta como se estivesse com os pais: pondera, negocia e faz brincadeiras com a mesma facilidade.

É importante entender qual é a origem do domínio específico daquele momento. Não é a genética - Alex Williams não herdou dos pais e avôs a habilidade para interagir com figuras de autoridade, como herdou a cor dos olhos e um forma de gesticular. Tampouco é racial: não é uma prática das culturas branca ou negra. Ele é negro - e Katie Brindle é branca. É uma vantagem cultural.

Alex possui essa capacidade porque, no decorrer de seus poucos anos de vida, a mãe e o pai - como fazem as famílias instruídas - a ensinaram pacientemente a ele, e lhe mostrando as regras do jogo, até aquele pequeno no carro a caminho do consultório médico. Lareau argumenta que, em grande parte, isso tem a ver com as vantagens da classe social. Alex Williams se sai melhor do que Katie Brindle porque é mais rico e uma escola melhor, mas também - e talvez ainda mais importante - porque o sentido de "ter direito" que lhe transmitiram é uma atitude perfeitamente adequada ao sucesso no mundo moderno.
 

Versão para
Impressão