por Fernando Barrichelo
 
Tim Harford: sobre John Von Neumann e sua obsessão pelo pôquer
 
O texto abaixo, do livro A lógica da vida, de Tim Harford (pag 55) apresenta um interessante relato sobre as origens da Teoria dos Jogos, com John Von Neumann e seu gosto pelo pôquer.

A teoria dos jogos surgiu da mente brilhante de John Von Neumann, um célebre e prodigioso matemático, quando ele decidiu criar uma teoria do pôquer. O brilhantismo acadêmico de Von Neumann nos proporcionou percepções fascinantes, mas a força fria de sua lógica poderia ter nos levado ao Armagedom. Esse brilhantismo foi reforçado pela sabedoria mais terrestre de Thomas Schelling, frequentemente expressa por meio de uma prosa inteligente, em vez de por meio de equações. Atormentado por um vício em cigarros do qual não conseguia se livrar, Schelling desviou a teoria dos jogos para uma direção que hoje nos permite análises surpreendentes dos infelizes viciados em máquinas caça-níqueis.

No fim dos anos 1920, o homem mais brilhante do mundo decidiu elaborar a maneira correta de jogar pôquer. John Von Neumann, um matemático que ajudou a criar o computador e a bomba atômica, estava interessado em uma nova ideia. A sua amada matemática poderia descobrir os segredos do pôquer, que parecia ser o jogo tipicamente humano, de segredos e mentiras?

Von Neumann acreditava que se desejássemos uma teoria que pudesse explicar a vida - ele a chamava de "teoria dos jogos" - deveríamos começar com uma teoria que pudesse explicar o pôquer. Seu objetivo era levar o rigor da matemática às ciências sociais, e isso queria dizer voltar-se para a economia, já que as decisões racionais da economia podem ser modeladas com a matemática. Von Neumann achou que poderia desenvolver uma explicação matemática, racional, para muitos aspectos da vida e que sua teoria poderia vir a ser aplicada em soluções diplomáticas, no surgimento inesperado de cooperação entre inimigos, nas possibilidades do terrorismo nuclear e mesmo no lado oculto do namoro, do amor e do casamento.

Mas, como ele explicou para seu colega Jacob Bronowski, o pôquer era o ponto de partida: ``A vida real consiste em blefes, em táticas sutis de engano, em perguntar para si mesmo o que a outra pessoa acha que quero fazer. E é a isso que se referem os jogos em minha teoria."

Blefe, enganos e adivinhação do pensamento alheio são temas pouco promissores para um matemático, mas se alguém poderia fazer isso, esse alguém era Johnny Von Neumann. Suas façanhas com cálculos eram notórias: em Princeton, após a guerra, ele ajudou a planejar o computador mais rápido do mundo, antes de desafiar a máquina em um torneio de operações matemáticas para mostrar que ele era mais rápido. Ninguém se surpreendeu com o resultado ou com o fato de o exibido Von Neumann ter sugerido o torneio.

Em outra ocasião, ele recusou um pedido para trabalhar com o auxílio de um supercomputador na solução de um importante problema, em vez de uma solução direta com lápis e papel. Embora houvesse matemáticos mais profundos, ninguém era mais rápido que Johnny. Na imaginação popular dos anos 1940 e 1950, Von Neumann talvez se destacasse mais que seu contemporâneo de Princeron, Albert Einstein, e seus colegas brincavam que ele era um semideus, que, tendo estudado intensamente os homens, era capaz de imitá-los com perfeição.

Contudo, para entender o pôquer, Von Neumann tinha de descobrir novos caminhos. O pôquer não é simplesmente um jogo de azar, com base em probabilidades, nem é um jogo de pura lógica, sem elementos aleatórios ou segredos, como o xadrez. O pôquer, ao contrário do que aparenta, é um desafio muito mais sutil. Durante o jogo, os jogadores fazem apostas para obter o direito de confrontar suas cartas com as dos adversários. No entanto, as informações mais importantes no pôquer são privadas.

Cada jogador vê apenas uma parte de um que­bra-cabeça e deve formar a imagem completa, observando o que os outroS jogadores fazem. A melhor mão leva a mesa (pot) - o acumulado das apostas; por isso, quanto maior a aposta, mais caro se torna perder a mesa. Ainda assim, em muitas rodadas, especialmente entre jogadores experientes, não há abertura das cartas, porque um dos jogadores faz uma aposta agressiva o suficiente para intimidar os outros. Isto é, não há conexão direta entre o que um jogador aposta e a mão que ele detém.

Os iniciantes acreditam, equivocadamente, que o blefe é apenas uma maneira de se levar a mesa com canas ruins. Na final de 1972 da World Series ofPoker, o famoso ladino Amarillo Slim ganhou o campeonato porque blefou tantas vezes que, quando apostou todas as suas fichas em um full house (uma mão excelente), seu adversário, "Puggy" Pearson, tinha certeza de que Slim estava blefando novamente; com isso, cobriu a aposta e perdeu. Um jogador que nunca blefa jamais ganhará uma boa mesa, porque nas raras vezes em que ele aumentar a aposta, os adversários vão sair da rodada sem comprometer muito dinheiro.

E há o blefe reverso: simular fraqueza quando você está com uma boa mão. Naquela que foi a final de 1988 da World SefÍes of Poker, Johnny Chan (apelidado de "Expresso do Oriente", por ter ganhado muito dinheiro tão rapidamente) desprezou todas as oportunidades de aumentar as apostas e apenas "pagava para ver" despretensiosamente o jogo adversário. Na última rodada, seu adversário, Erik Seidel, estava convencido de que Chan não tinha uma boa mão e apostou tudo o que possuía. Chan cobriu a aposta e exibiu urna sequência, arrematando 700 mil dólares e o título de campeão mundial pelo segundo ano consecutivo.

Tentar enganar o adversário parece uma questão de psicologia, não de matemática. Poderia realmente haver uma estratégia racional por trás de todos esses blefes, que não passasse pela ideia de leitura corporal ou de interpretação dos movimentos sutis do adversário? A matemática pura poderia identificar esses movimentos de blefe? Von Neumann achava que sim. Seu trabalho sobre a teoria dos jogos atingiu o ápice com o livro Theory of Games and Economic Behavior, lançado em 1944 e escrito em conjunto com o economista Oskar Morgenstern. O livro incluía um modelo estilizado de pôquer, no qual dois jogadores racionais se confrontavam em um cenário extremamente simples.

Para entender a abordagem do autor, imagine-se jogando uma rodada do pôquer de Von Neumann. As regras mais simples limitam sensivelmente a capacidade de variar suas apostas ou de você estudar seu adversário, aumentando as apostas. Ainda assim, essas regras traduzem algo da essência do jogo de pôquer. Você e seu adversário fazem uma pequena aposta inicial na mesa, e você começa.

Você olha para suas cartas e pensa. As regras mais simples lhe dão duas opções: ou passar a vez (não apostar) ou fazer uma aposta maior. Nesse jogo simplificado, quando você passa a vez, as mãos são mostradas e a melhor mão ganha a mesa. (Seu adversário não tem de tomar nenhuma decisão nesse momento; como o pôquer real, isso não é justo, e é por isso que os jogadores se alternam em cada jogada.) Contudo, se você faz a aposta, é o adversário que deve optar agora: ele pode desistir, encerrando a jogada e cedendo a pequena mesa para você, ou ele pode "pagar para ver", aceitando a sua aposta, o que significa abrir o jogo diante das apostas maiores. Qual seria o movimento racional? E qual seria a resposta racional de seu adversário?

Na realidade, as duas respostas estão relacionadas. Você não deve decidir sem considerar a resposta do adversário, e este não deve reagir à sua aposta sem refletir sobre a estratégia que você tenha. A relação recíproca das duas estratégias é o que toma a questão um problema para a teoria dos jogos de Von Neumann, e não tanto para a teoria das probabilidades, necessária para o entendimento do jogo de roleta.

À primeira vista, mesmo essa versão simplificada do pôquer parece terminar em um ciclo de raciocínio sem fim. Se você decidir apostar mesmo com cartas muito ruins, então o adversário, com qualquer mão razoável, deverá "pagar para ver". Se você preferir apostar somente com as melhores mãos possíveis, ele deverá desistir quando você fizer as apostas. O que temos é um processo de raciocínio que passa pelo ciclo: "Se ele pensa que eu penso que ele pensa ... " Não podemos fazer mais nada? Sim, podemos, se seguirmos a análise de Von Neumann.

O que Von Neumann criou foi uma teoria do processo perfeito de tomada de decisão; ele estava procurando os movimentos que os jogadores infalíveis executariam. A teoria dos jogos encontra esses movimentos procurando as estratégias de oposição que sejam consistentes, no sentido de que nenhum jogador infalível mudaria sua estratégia se soubesse a estratégia do outro jogador. Há várias estratégias que não seguem esse padrão. Por exemplo, se o adversário for muito cauteloso e desistir do jogo com frequência, você provavelmente blefará bastante. Mas se você blefar muito, o adversário provavelmente não será tão cauteloso. As duas estratégias não se encaixam. Elas poderiam ser usadas por jogadores ingênuos, mas não pelos jogadores perfeitamente racionais de Von Neumann.

Em vez disso, precisamos considerar a combinação das estratégias dos dois jogadores. A estratégia de seu adversário é mais simples que a sua. Uma vez que o jogo simplificado não lhe dá a opção de desistir, também não dá ao adversário a chance de blefar, porque não é possível blefar alguém que não pode desistir. (A ele, por outro lado, é permitido desistir, o que quer dizer que você pode tentar blefá-lo.) Uma vez que ele não pode blefar, ele deve simplesmente "pagar para ver", quando estiver com uma mão boa, ou desistir, quando estiver com uma mão ruim. A única questão é saber qual o nível de "mão boa" que ele deve ter para "pagar para ver". Isso vai depender da frequência com que você blefa.

Que atitude tomar, então? Com uma mão excelente, você deve fazer a aposta: não perderá nada se o adversário desistir, enquanto terá chance de ganhar uma boa mesa se ele "pagar para ver". Mas com uma mão mediana, você não deve apostar: se ele estiver com uma mão ruim, ele desistirá e você levará a mesa, que você ganharia do mesmo jeito se passasse a vez; mas se de estiver com uma boa mão, ele "pagará para ver" e ganhará. Cara, ele ganha; coroa, você perde. Você deve passar a vez e torcer para que sua mão mediana ganhe a mesa.

E se você estiver com uma péssima mão? Deve passar ou apostar? A resposta é surpreendente. Passar seria pouco inteligente, porque os jogos seriam abertos e você perderia. Faria mais sentido apostar com essa péssima mão, porque a única maneira de você ganhar alguma coisa é com a desistência do adversário, e a única maneira de ele desistir é se você fizer a aposta. Paradoxalmente, é melhor você apostar com cartas ruins do que com uma mão mediana: o blefe perfeito (e racional)!

Há uma segunda razão para você apostar com cartas ruins e não fazê-lo com uma mão mediana: seu adversário terá de "pagar para ver" com um pouco mais de frequência. Como ele sabe que suas apostas são bem fracas às vezes, não poderá se permitir a desistência com muita facilidade. Isso significa que, quando você apostar com uma boa mão, provavelmente ele "pagará para ver" e você ganhará com essa boa mão. Como você está blefando com cartas ruins, suas boas mãos lhe darão mais dinheiro - como aconteceu com o fuIl house de Amarillo Slim na última rodada da final de 1972.

"Dos dois motivos possíveis para o blefe", escreveu Von Neumann em Theory of Games, "o primeiro é dar uma (falsa) impressão de força em situação de fraqueza (real); e o segundo é a intenção de dar uma (falsa) impressão de fraqueza em situação de força (real)."

O que é notável na análise de Von Neumann é a maneira como sua tática surge racionalmente da lógica do jogo. Von Neumann havia encontrado o desafio que mencionara a Bronowski e mostrou que o blefe, longe de ser algum insondável elemento humano do jogo de pôquer, é regido por leis matemáticas. A mensagem de Von Neumann é de que há uma base matemática, racional, mesmo para o jogo aparentemente psicológico de blefar no pôquer. E se ele estava certo de que o pôquer era uma analogia significativa para os problemas cotidianos, seu sucesso sugeria que talvez, apenas talvez, houvesse uma base matemática e racional para a própria vida.

O livro de Von Neumann tornou-se muito famoso não como um manual de pôquer, mas por situar a economia e as ciências sociais em uma base lógica, matemática. Um crítico daquela época declarou: ``A posteridade poderá considerar esse livro como uma"das maiores conquistas científicas da primeira metade do século XX". Mas os acadêmicos se decepcionaram: logo perceberam que a aplicação da teoria dos jogos na vida real era difícil.

Por muitos anos após a morte de Von Neumann, em 1957, os acadêmicos lutaram para aplicar a teoria dos jogos em questões de economia, biologia e estratégia militar, mas não conseguiram corresponder às expectativas trazidas por Theory of Games. O problema talvez fosse que Von Neumann era considerado um semideus, enquanto, para ser útil, a teoria dos jogos teria de se aproximar do cérebro mais limitado dos simples mortais.

Para compreender a dificuldade, considere o que Von Neumann entendia por "jogo": é a descrição matemática do vínculo entre as estratégias e as possíveis remunerações. Para definir um curso racional de ação, bastaria aplicar a matemática. Isso tudo pode parecer muito abstrato, mas a teoria dos jogos de Von Neumann é abstrata. Se você já está confuso, está começando a perceber as dificuldades dessa teoria.

Fundamental na abordagem de Von Neumann é a suposição de que os jogadores são tão inteligentes quanto o próprio Von Neumann. Ele queria entender como seria o jogo infalível, e sua teoria pode, em princípio, ser aplicada a qualquer jogo de "soma zero" entre dois jogadores, como o pôquer, em que o valor que um jogador perde é o valor que o outro ganha. Mas, na prática, há dois problemas.

O primeiro é que o jogo pode ser tão complexo que mesmo o mais rápido dos computadores não poderia calcular a estratégia perfeita. O modelo do pôquer é uma ilustração exata do porquê de a teoria dos jogos ter começado a provocar cena desapontamento no mundo real. Enquanto a análise de Von Neumann destilava com grande elegância alguns insights essenciais para uma boa jogada no pôquer, ela não ia muito longe como um manual prático. O modelo de Von Neumann alcança alguma simplicidade ao limitar o número de jogadores, suas opções e o tipo de cartas.

O emaranhado do pôquer real torna-serapidamente impressionante: considerando-se dez possibilidades por segundo, um jogador teria de ter começado a calcular desde o nascimento da galáxia para encontrar uma solução por meio da teoria dos jogos para apenas dois jogadores dentro do jogo mais popular de pôquer, o Texas Hold`em. E se o pôquer real já representa tamanho desafio, que dizer de um problema real de economia, como negociar um aumento ou definir uma estratégia de negócio?

O segundo problema é que a teoria dos jogos torna-se menos útil se o adversário é falível. Se o jogador 2 não é um expert, o jogador 1 poderá explorar seus erros, em vez de se defender das brilhantes estratégias que nunca acontecerão. Quanto pior o adversário, menos útil é a teoria dos jogos.

Esse problema manifesta-se particularmente no pôquer. Uma estratégia de pôquer perfeita sob a ótica da teoria dos jogos deixará passar boas oponunidades no caso de um jogo contra um adversário falível - isto é, contra qualquer um. Ao final do jogo, conforme as probabilidades vão se equilibrando, a estratégia não será derrotada. Mas ela poderá ganhar muito lentamente diante de adversários fracos. Um adversário pode estar blefando muito; outro pode nunca blefar. Para um tipo de falibilidade, exige-se um jogo mais conservador; para o outro, um jogo mais agressivo. A teoria dos jogos presume que erros nunca serão cometidos.

Um jogador de pôquer real que quisesse usar as teorias de Von Neumann teria de ser capaz de executar cálculos mais rapidamente que o próprio semideus. Ele também teria de lidar com o problema dos adversários ingênuos, cujo comportamento não se enquadrasse nas jo­gadas perfeitas imaginadas pela teoria de Neumann.

Não surpreendeu, portanto, que a Princeton University Press tenha divulgado em 1949 um anúncio um tanto tímido para celebrar os cinco anos das fracas vendas do livro Theory of Games and Economic Behavior. O anúncio dizia: "Bons livros sempre levam algum tempo para alcançar reconhecimento ... sua influência ultrapassa em muito o número de leitores", e mencionava "alguns exemplares comprados por jogadores profissionais". Mas há pouca evidência de que as teorias de Von Neumann tenham provocado impacto imediato na comunidade do pôquer.

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