Mala com rodinhas e as invenções tardias
 
Antifrágil, Nassim Nicholas Taleb, Ed Best Business, 2014
 

Considere a história da mala com rodinhas

Carrego uma grande mala com rodinhas, quase sempre repleta de livros, em praticamente todas as minhas viagens. Ela é pesada (quando viajo, os livros que me interessam são sempre de capa dura).

Em junho de 2012, estava eu arrastando essa mala genérica, pesada, cheia de livros, até a área externa do terminal internacional do aeroporto JFK e, ao olhar para as rodinhas na parte inferior da mala e para a alça de metal que ajuda a puxá-la, de repente lembrei-me dos dias em que precisava rebocar minha bagagem recheada de livros ao longo do mesmo terminal, com paradas regulares para descansar e deixar que o ácido láctico fluísse pelos meus braços doloridos. Eu não tinha dinheiro para pagar um carregador. Tenho passado pelo mesmo terminal há três décadas, com e sem rodinhas, e o contraste é espantoso. Chamou-me a atenção nossa falta de imaginação: vínhamos colocando nossas malas em cima de um carrinho com rodas, mas ninguém havia pensado em colocar rodas minúsculas diretamente sob a mala.

Como é possível conceber que se passaram quase 6 mil anos entre a invenção da roda e essa implementação brilhante (por algum fabricante de malas em um monótono subúrbio industrial)? E bilhões de horas gastas por viajantes como eu, arrastando bagagens por corredores repletos de rudes funcionários aduaneiros.

Pior, isso aconteceu mais ou menos três décadas depois de mandarmos um homem à lua. Considere toda a sofisticação usada para se enviar alguém ao espaço, e seu impacto totalmente insignificante em minha vida, e compare-a com o ácido láctico em meus braços, a dor em minha coluna lombar, a feridas nas palmas de minhas mãos e a sensação de impotência diante de um longo corredor. De fato, embora extremamente consequente, estamos falando de algo trivial: uma tecnologia muito simples.

Porém, a tecnologia só é trivial se analisada retrospectivamente, não prospectivamente. Todas essas mentes brilhantes, normalmente com cabelos desgrenhados e amarrotados, que frequentam conferências distantes para discutir Godel, Shmodel, quarks, coisa que ainda nem têm nome, tiveram de carregar suas malas por longo terminais de aeroporto, sem pensar em aplicar seu cérebro a um problema de transporte tão insignificante.

(Dissemos que a sociedade intelectual premia as derivadas "difíceis", em comparação com a prática, onde não existe qualquer penalidade para a simplicidade.) E, mesmo que essas mentes brilhantes tivessem aplicado seus cérebros supostamente superdesenvolvidos a um problema tão óbvio e trivial, elas, provavelmente, não teriam chegado a lugar algum.

Isso nos diz algo sobre como mapeamos o futuro. Nós, humanos, carecemos de imaginação a ponto de nem sequer sabermos como serão as coisas importantes de amanhã. Usamos a aleatoriedade para absorver suavemente as descobertas, e é por isso que a antifragilidade é necessária.

A história da roda, em si, é ainda mais humilhante do que a da mala: continuamos sendo lembrados de que os mesoamericanos não inventaram a roda. Eles inventaram. Eles tinham rodas. Mas as rodas estavam em pequenos brinquedos para as crianças. Foi exatamente como a história da mala: os maias e os zapotecas não deram o salto para a aplicabilidade.

Eles empregaram muito trabalho humano, e quantidades enormes de milho e ácido láctico para mover placas gigantescas de pedra até os espaços planos, ideais para carrinhos de mão e carroças, onde construíram suas pirâmides. Eles chegaram, inclusive, a movimentá-las usando toras de madeira. Enquanto isso, seus filhos pequenos estavam rolando seus brinquedos nos pisos de estuque (ou, quem sabe, nem mesmo fizessem isso, pois os brinquedos, talvez, fossem utilizados exclusivamente para fins mortuários).

A mesma história vale para a máquina a vapor: os gregos tinham uma versão operacional dela, por diversão, é claro: a eolípila, uma turbina que girava quando aquecida, conforme descrita por Hero de Alexandria. Mas foi necessária a Revolução Industrial para que descobríssemos essa descoberta anterior. Assim como os grandes gênios inventam seus antecessores, as inovações práticas fundam sua ascendência teórica.

Descoberta e implementação

Há algo de sorrateiro no processo de descoberta e implementação - algo que as pessoas, normalmente, chamam de evolução. Somos governados por pequenas (ou grandes) mudanças acidentais, mais acidentais do que admitimos. Usamos um discurso grandiloquente, mas praticamente não temos imaginação, exceto alguns visionários que parecem reconhecer a opcionalidade das coisas. Precisamos de alguma aleatoriedade para nos ajudar, com uma dose dupla de antifragilidade. Pois a aleatoriedade atua em dois níveis: o da invenção e o da implementação. O primeiro não é tão surpreendente assim, embora descartemos o papel do acaso, especialmente quando se trata de nossas próprias descobertas.

Mas me custou uma vida inteira descobrir o segundo: a implementação não acompanha, necessariamente, a invenção. Ela também exige sorte e as devidas circunstâncias. A história da medicina está repleta de estranhas sequências da descoberta de uma cura, e muito tempo depois, de sua implementação - como se as duas fossem empreendimentos completamente distintos, sendo a implementação (muito) mais difícil do que a descoberta. O simples gesto de apresentar algo ao mercado exige lutar contra uma série de opositores, administradores, pessoas desimportantes, formalistas, montanhas de detalhes que o convidam a desistir e o próprio humor, eventualmente já desencorajado. Em outras palavras, identificar a opção (mais uma vez, existe uma cegueira às opções). Tudo o que é necessário, aqui, é a sabedoria para perceber o que se tem em mãos.

O meio inventado. Há uma categoria de coisas que podemos chamar de meio inventado, fazer com que o meio inventado passe para a categoria inventado, muitas vezes, é o verdadeiro progresso. Às vezes, é preciso contar com um visionário para descobrir o que fazer com uma descoberta, um discernimento que ele, e só ele, consegue ter.

Considere, por exemplo, o mouse do computador, ou o que chamamos de interface gráfica: foi preciso que Steve Jobs o colocasse em nossa mesa, e, em seguida, em nosso colo - somente ele teve uma visão da dialética entre as imagens e os seres humanos - mais tarde adicionando sons, para formar uma trialética. As coisas, como se diz, estão "olhando para nós".

Além disso, as "tecnologias" mais simples, ou, talvez, nem mesmo as tecnologias, mas as ferramentas, como a roda, são as que parecem governar o mundo. Apesar do exagero em torno delas, o que chamamos de tecnologia tem uma taxa de mortalidade muito elevada, conforme mostrarei no Capítulo 20.

Basta considerar que, de todos os meios de transporte projetados nos últimos 3 mil anos ou mais, desde as armas dos hicsos aos desenhos de Hero de Alexandria, o transporte individual está limitado, hoje, a bicicletas e carros (e a algumas variantes entre os dois). Mesmo assim, as tecnologias parecem retroceder e avançar, com aquilo que é mais natural e menos frágil suplantando o tecnológico.

A roda, nascida no Oriente Médio, parece ter desaparecido depois que a invasão árabe apresentou ao Levante um uso mais genérico do camelo e os moradores perceberam que o camelo era mais robusto - e, portanto, mais eficiente a longo prazo - do que a frágil tecnologia da roda. Além disso, uma vez que uma pessoa poderia controlar seis camelos, mas apenas uma carruagem, o recuo diante da tecnologia se mostrou economicamente mais sensato.

Mais uma vez, menos é mais

A história da mala estava me perturbando, até que percebi, olhando para uma xícara de café de porcelana, que existia uma definição simples de fragilidade, e, portanto, uma heurística de verificação direta e prática: quanto mais simples e óbvia a descoberta, menos equipados estamos para concebê-la por métodos complexos. O fundamental é que aquilo que é significativo só pode ser revelado com a prática. Quantas dessas heurísticas simples, trivialmente simples, estão, neste momento, nos observando e rindo de nós?

A história da roda também ilustra a questão central deste capítulo: tanto os governos quanto as universidades têm feito muito pouco a favor da inovação e da descoberta, precisamente porque, para além de seu racionalismo ofuscante, eles buscam o complexo, o lúgubre, o notável, o narrado, o cientificista e o grandioso, raramente a rodinha da mala. Percebi que a simplicidade não rende láureas.

 

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