A verdade e seu paradoxo
 
Lógica Conceitos-chaves em Filosofia, Lawrence Goldstein, 2007, Editora Artmed, pag 69
 

Dick não entende por que razão dizer a verdade e tende a mentir todas as vezes que lhe convém. Grace considera essa uma das características mais irritantes de Dick e acha que deve recorrer a algum tipo de psicologia comportamental para curá-lo. Grace pede a Bert para ser sua testemunha e comunica a Dick: "A cada vez que você disser algo falso, Dick, darei um soco em seu nariz, mas a cada vez que você disser a verdade, lhe darei um dólar".

"Isto é muito generoso da sua parte", diz Dick, e a generosa Grace imediatamente lhe dá um dólar. "2 + 2 = 4", diz Díck, e Grace lhe estende outro dólar. Dick fica bastante animado com a possibilidade de ganhar dinheiro tão facil­mente e diz "Agora você vai me dar outro dólar".

Mas Grace lhe dá um soco no nariz. Ai! Dick fica confuso. Ele supôs que Grace lhe daria outro dólar e, assim, a última coisa que ele disse teria sido verdadeira e o faria merecer este dólar. Mas, igualmente, Grace, ao não lhe dar um dólar, tornou falsa a última frase de Dick, portanto ela o fez merecer um soco no nariz. Por um tempo, Dick, perplexo e desapontado, temendo dizer alguma coisa, apenas massageia, arrependido,seu nariz dolorido.

Finalmente, diz a Grace: "Agora você irá dar um soco no meu nariz".

Grace fica indecisa. Como deve responder a esse enunciado final de Dick? Se lhe der um soco no nariz, então o que ele disse seria verdade e ela deveria ter dado um dólar a ele e não um soco em seu nariz. Por outro lado, se não lhe der um soco no nariz e lhe der um dólar, então o que ele disse seria falso e, de acordo com sua promessa, deveria não lhe ter dado um dólar, mas um soco no nariz. Bert não consegue lhe ajudar. Apenas balança a cabeça e murmura "É surpreendente, Grace".

O que temos aqui é um paradoxo (...) A relação entre eles consiste em que ambos giram em torno dos conceitos de verdade e de falsídade. O enunciado final de Dick (que Grace irá dar um soco em seu nariz) é verdadeiro ou falso? Se é verdadeiro, então Grace irá dar um soco em seu nariz.

Mas ela se comprometeu a fazer isso apenas quando ele dissesse algo falso, logo, o que ele disse deve ser falso. Contudo, se o que ele diz é realmente falso, então ele irá receber um soco de Grace em seu nariz (que era o que havia sido combinado), logo, uma vez que ele disse que iria receber esse soco, o que disse é verdadeiro! Em resumo: se o enunciado final de Dick é verdadeiro, então ele é falso, se é falso, então é verdadeiro!

Uma das primeiras reações a um paradoxo como este é pensar que é algo tão pueril que não vale a pena se preocupar com ele. Uma segunda reação é pensar que, uma vez que o raciocínio apóia-se apenas em alguns poucos princípios básicos e envolve somente suposições intuitivamente aceitáveis, o fato de que ele conduza a uma conclusão absurda deve indicar ou que existe algo profunda e fundamentalmente errado no modo como raciocinamos ou que uma ou mais de nossas intuições básicas devem estar erradas.

Qualquer que seja o problema, torna-se urgente localizá-lo e encontrar uma solução. É por essa razão que paradoxos, longe de serem considerados meros passatempos, têm sido tratados com a maior seriedade por filósofos ao longo dos tempos.

Quais são exatamente as suposições que fizemos em nossa discussão sobre a tentativa de Grace em curar o mau hábito de Dick em faltar com a verdade? Bem, supusemos que o enunciado final de Dick era ou verdadeiro ou falso e isto levou à excêntrica conclusão de que, se for verdadeiro, é falso, e se for falso, é verdadeiro.

Mas, talvez, esta suposição não seja razoável. Não poderia ser o caso de que o enunciado final de Dick não fosse nem verdadeiro, nem falso? Isto não parece propriamente plausível. Afinal, se Dick diz "Agora você irá dar um soco no meu nariz" e Grace, esquecendo-se de sua promessa e sem levar adiante nenhum raciocínio complicado, dá um soco no nariz de Dick simplesmente porque tem vontade, então o que ele disse era inteiramente verdadeiro. Se ela não desfere nenhum soco, então o que ele disse era totalmente falso. Logo, o enunciado final de Dick era ou verdadeiro ou falso, mas não nenhum dos dois.

Mas e o que dizer das declarações de Grace ao tentar explicar a Dick os detalhes de sua terapia comportamental? A primeira parte de sua explicação foi: "A cada vez que você disser algo falso, Dick, darei um soco em seu nariz". Uma maneira de expressar isso em termos lógicos é:

(G) == Para cada sentença que Dick proferir, "Grace irá dar um soco no nariz de Dick" é verdadeira se e somente se o que Dick disser não for verdadeiro.

Suponha que, em certa ocasião, Dick profira a sentença "Porcos podem voar". Então, ao substituir esta sentença pela frase "o que Dick disser", temos a seguinte instanciação:

== "Grace irá dar um soco no nariz de Dick" é verdadeira se e somente se "Porcos podem voar" não for verdadeira.

Assim, não é preciso ser um gênio para se dar conta de que, quando Dick diz "Porcos podem voar", irá receber de Grace um soco no nariz. O caso estranho aparece na ocasião em que Dick diz "Grace irá dar um soco no nariz de Dick". Aqui, temos a seguinte instanciação de (G):

== "Grace irá dar um soco no nariz de Dick" é verdadeira se e somente se "Grace irá dar um soco no nariz de Dick" não for verdadeira.

Para dizer o mínimo, esta sentença é bastante peculiar. O que podemos inferir dela? Que Dick irá receber de Grace um soco no nariz? Que isso não irá acontecer? A sentença parece não nos dizer nada de verdadeiro e nada de falso; parece ser proferida de maneira vazia.

Se eu disser a você: "Bert está no jardim se e somente se Bert está no jardim", então não lhe contei nada a respeito de onde Bert está; de fato, não lhe contei nada a respeito do que quer que seja. Você pode sentir-se inclinado a julgar que proferi uma sentença gramaticalmente perfeita em português, mas que a sentença é vazia, não possui conteúdo, não expressa nenhuma proposição, falha em proporcionar um enunciado.

Se esta é a linha de pensamento que você se sente inclinado a adotar, então você deve querer dizer o mesmo sobre as palavras que Grace inicialmente disse a Dick. Porque parte da sentença que ela proferiu é parafraseada por(G) e parte de (G) em termos mais precisos, uma instanciação de (G) - é uma sentença vazia e meio estranha.

Examinamos, e mesmo desafiamos, a suposição de que a sentença inicial de Grace é um enunciado de boa fé. Ela é uma sentença gramaticalmente perfeita e tem significado - nós a entendemos - e, com base nas evidências proporcionadas pelas poucas interações iniciais entre Grace, Dick e Bert, o tomamos por verdadeiro.

Se Dick tivesse dito "Leões são animais" e tivesse recebido de Grace um soco no nariz, teríamos, então, imediatamente reconhecido que seu proferimento inicial era falso. Contudo, vimos, na ocasião, que uma resposta de Dick paralisou Grace e a deixou sem ação. O proferimento de Dick parecia ser falso, se verdadeiro e verdadeiro, se falso; assim, se é tanto verdadeiro quanto falso, então é ambos. E isso nos preocupou.

Mas, aqui, chegamos a uma outra suposição que foi feita em nossa discussão. Por que nos preocupamos? Não é apenas uma suposição que um enunciado não pode ser tanto verdadeiro quanto falso? Uma resposta comum a ser dada a esta altura é que, enquanto um filme pode ser tanto longo quanto interessante, uma pessoa pode ser tanto gentil quanto inteligente, um enunciado não pode ser tanto verdadeiro quanto falso simplesmente devido àquilo que "verdadeiro" e "falso" significam.

Mas o que "verdadeiro" e "falso" significam? Mesmo que descobríssemos que não podemos dar definições de "verdadeiro" e de "falso" (palavras simples como "azul", "um", e "verdadeiro" podem não ser suscetíveis de receber qualquer definição esclarecedora) , elas significam alguma coisa, pois, de outro modo, não poderíamos compreender as sentenças nas quais ocorrem.

O que "verdadeiro" significa ou, para não dar a impressão de que estamos desperdiçando tempo discutindo sobre o significado das palavras, formulemos a questão da seguinte maneira: o que é a verdade? O que é que todas as verdades compartilham e o que é que falta ao que não é verdade? Esse é o ponto central deste capítulo.

 

Link: http://www.barrichelo.com.br/blog/trechos.asp?id=115