Vergonha da mãe
 
Por mais um dia, Mitch Albom, 2006, Editora Sextante, pag 87
 

Fiquei olhando minha mãe sorrir. Como era possível ela orgulhar-se tanto de lavar o cabelo de alguém a domicílio ?

- Você devia ver a filha do Charley, Rose - disse minha mãe - Aquilo é que é beleza. Ela arrasa corações.
- É mesmo? Como ela se chama?
- Maria. Ela não arrasa corações, Charley?

Como eu podia responder àquilo? A última vez que elas se viram foi na morte da minha mãe, oito anos antes. Maria ainda era uma adolescente. Como eu poderia contar o que acontecera desde então?

Que eu tinha caído fora da vida da minha filha; que agora seu sobrenome era outro; que eu tinha descido tão baixo que fora excluído de seu casamento? Maria me amava, me amava de verdade. Quando eu chegava do trabalho, ela vinha correndo para mim com os braços erguidos, gritando "Papai, me levanta!".

O que foi que aconteceu?

- Maria tem vergonha de mim - murmurei finalmente.
- Não seja tolo - disse minha mãe.

(...) De todas as coisas que me deixavam infeliz na presença da minha mãe, a pior era ser um mau pai.

- Sabe de uma coisa, Rose? - ela disse de repente - O Charley nunca me deixou cortar o cabelo dele. Você acredita? Ela fazia questão de ir ao barbeiro.
- Por que, querida?
- Ah, você sabe como é. Depois que eles chegam a uma certa idade, o negócio é "Sai prá lá, mãe, sai prá lá".
- As crianças ficam com vergonha dos pais - disse Rose.
- As crianças ficam com vergonha dos pais - repetiu minha mãe.

Era verdade. Na adolescência, eu queria que minha mãe ficasse longe de mim. Recusava-me a sentar ao lado dela no cinema. Fugia dos seus beijos. Sua figura feminina me incomodava, e eu ficava louco de raiva por ela ser a única mulher divorciada das redondezas. Queria que ela se comportasse como as outras mães, que usasse vestidos caseiros, que fizesse álbuns de recortes e bolos de chocolate.

- Às vezes os filhos dizem coisas horríveis, não é, Rose? A gente tem até vontade de perguntar: "De quem é esse filho?"

Rose deu um risinho.

- Geralmente é porque estão sofrendo por causa de alguma coisa e precisam se livrar dela.

Ela me lançou um olhar.

- Lembre-se, Charley. Às vezes os filhos querem que você sofra o que eles estão sofrendo.

Sofrer o que eles estão sofrendo? Então foi isso que eu fiz? Será que eu queria ver no rosto da minha mãe a rejeição que eu sentia por parte do meu pai? Será que minha filha fez o mesmo comigo?

- Eu não quis dizer aquilo, mãe - sussurei.
- Aquilo o quê, Charley?
- Sentir vergonha. De você, das suas roupas, da sua... condição.

Ela lavou o xampu das mãos e dirigiu o jato de água para o couro cabeludo de Rose.

- UM FILHO QUE SENTE VERGONHA DA MÃE - ela disse - É APENAS UM FILHO QUE AINDA NÃO VIVEU O BASTANTE.

 

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