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Meditação, neurociência e visualização

A maior de todas as mágicas, James R. Doty, Sextante, 2016
 
O primeiro som que todo ser humano ou são as batidas do coração da mãe. Aquele ritmo regular é o primeiro vínculo que todos conhecemos, não com nossa mente, mas com nosso coração. É no coração que encontramos consolo e segurança nas situações mais sombrias. É ele que nos une e que se parte quando ficamos distantes. O coração tem seu próprio tipo de mágica - o amor.

Quando Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin, começou a estudar a compaixão, ele o fez com monges tibetanos que praticavam a meditação há muito tempo. Os monges foram informados de que usariam um gorro na cabeça e de que nele estariam inseridos inúmeros eletrodos do eletroencefalógrafo (EEG) que mediria sua compaixão. Ao ouvirem isso, os monges começaram a rir. Os pesquisadores acharam que era porque o gorro tinha um aspecto engraçado, com todos aqueles eletrodos, cada um ligado a um fio comprido, parecendo uma peruca desgrenhada. Mas eles não riam devido ao gorro, como pensaram os cientistas. Os pesquisadores entenderam tudo errado. E um monge finalmente explicou o que eles tinham achado tão divertido:

- Todo mundo sabe que a compaixão não vem do cérebro. Vem do coração.

As pesquisas mostram que o coração é um órgão inteligente, com uma influência própria e profunda que provém não apenas do cérebro, mas é exercida nele, em nossas emoções, nosso raciocínio e nossas escolhas. Em vez de esperar passivamente as instruções do cérebro, o coração pensa por si e envia sinais ao resto do corpo. A parte do nervo vago que nasce no tronco encefálico e tem uma imensa inervação no coração e em outros órgãos faz parte do sistema nervoso autônomo (SNA).

O padrão de ritmos cardíacos conhecido como variabilidade do ritmo cardíaco (VRC) é um reflexo de nosso estado emocional interno e é influenciado pelo SNA. Nas horas de estresse ou medo, o tônus do nervo vago diminui e há um predomínio da expressão da parte do SNA chamada de sistema nervoso simpático (SNS).

O SNS é associado a uma parte muito primitiva do nosso sistema nervoso, feita para responder às ameaças ou ao medo elevando a pressão sanguínea e a frequência cardíaca, bem como diminuindo a variabilidade do ritmo cardíaco. Inversamente, quando a pessoa está calma, receptiva e relaxada, o tônus vagal aumenta e a expressão do sistema nervoso parassimpático (SNP) predomina. O SNP estimula nossa reação de repouso e digestão, ao passo que o SNS estimula a reação de luta ou fuga. Pela medição da VRC, os pesquisadores conseguem analisar como o coração e o sistema nervoso respondem ao estresse e às emoções.

Os sentimentos de amor e compaixão estão associados a um aumento da VRC, e, quando sentimos insegurança, raiva ou frustração, nossa VRC diminui, tornando-se mais contínua e regular. Muita gente se confunde com isso, pois pareceria lógico que, com o aumento do estresse e da frequência cardíaca, nossa VRC se tornasse caótica, irregular e variável. E, ao contrário, quando a VRC fosse mais regular é que deveríamos ficar mais calmos e relaxados. Ocorre, porém, que a VRC é justamente o oposto do que esperamos.

Curiosamente, uma das maiores causas de morte súbita cardíaca é a falta de variabilidade do ritmo cardíaco - resultante da agitação provocada por ameaças e da redução do tônus vagal. Estresse, ansiedade, medo crônico, pensamentos negativos, tudo isso pode fazer o sangue martelar o coração com uma força extra. É o equivalente corporal a um grito de "Fogo!" num cinema lotado. Repetidas vezes. Alguém acaba sendo pisoteado.

Ruth estava me ajudando a formar novas conexões neurais no cérebro. Foi minha primeira experiência com a neuroplasticidade, muito antes de esse termo passar a ser comumente usado. Na verdade, embora o psicólogo americano William James tenha apresentado essa teoria pela primeira vez há mais de 120 anos, só na última parte do século XX se veio a compreender que a neuroplasticidade era possível. Ruth me treinava não apenas para modificar meu cérebro, criando novos circuitos neurais, como também para regular meu tônus vagal e, com isso, afetar meu estado emocional, minha frequência cardíaca e minha pressão sanguínea.

Tendo apenas um senso intuitivo do efeito daquilo que me ensinava, e sem possuir qualquer conhecimento da fisiologia por trás da mágica, ela ia me tornando mais concentrado, atento e calmo, ia aprimorando meu sistema imunológico, reduzindo meu estresse e até baixando minha pressão sanguínea. Um dia, mamãe me p rguntou se eu andava usando drogas. Até então, eu nunca o fizera. Tinha pavor de álcool e drogas. Àquela altura, mamãe já havia tentado o suicídio várias vezes com drogas medicamentosas. Ela me disse que eu parecia muito mais calmo e feliz e bem menos tenso. Ruth aprimorava minha capacidade de regular as emoções, aumentando minha empatia e minha criação de vínculos sociais, e me tornando mais otimista. Ela modificou minha maneira de perceber a mim mesmo e o mundo. E isso mudou absolutamente tudo.




Talvez eu não fosse capaz de mudar a realidade dos outros, mas sabia que podia modificar a minha. Sabia que cada item da minha lista se tornaria realidade e, após a partida de Ruth, decorei-a tão minuciosamente que pude guardá-la na minha caixa especial, com o livro do Dale Carnegie, os truques de mágica do Neil e o caderninho de notas, no qual escrevera tudo que Ruth me ensinara.

Eu treinava todas as manhãs e todas as noites, dia após dia, semana após semana, mês após mês. Tal como os atletas que, ao se visualizarem ou se imaginarem praticando mentalmente uma habilidade repetidas vezes - o arremesso perfeito, o salto preciso, a tacada certeira, o saque matador -, vão modificando sua fisiologia e criando no cérebro padrões neurais que de fato habilitem seus músculos a ter novas formas de desempenho, eu usava imagens visuais para criar novas vias neurais em meu cérebro. O cérebro não distingue entre a experiência imaginada com intensidade e a experiência real. Eu estava treinando minha mente para ser médico muito antes de me candidatar à faculdade de medicina, pela simples visualização de mim mesmo como médico. Outro mistério do cérebro é que ele sempre prefere o conhecido ao desconhe ido. Ao visualizar meu futuro sucesso, eu tornava esse sucesso conhecido do meu cérebro.

A intenção é uma coisa engraçada: aquilo em que o cérebro deposita sua intenção é o que ele vê. Já lhe aconteceu pensar em comprar certo tipo de carro e, de repente, passar a ver exatamente esse modelo em todo lugar a que vai? Será que é sua intenção que faz o carro aparecer ou será a atenção concentrada do seu cérebro que lhe permite enfim ver o que estava à sua frente o tempo todo? "Você obtém aquilo que espera" pode ser uma simples ideia transmitida a um pensamento positivo da Nova Era ou um poderoso exemplo da neurociência e da plasticidade cerebral.

A atenção é uma coisa poderosa - pode, literalmente, transformar nosso cérebro, criando mais massa cinzenta justo nas área que nos ajudam a aprender, a agir e a tornar realidade os nossos sonhos. Ruth me ensinou a prestar atenção ao que eu esperava da vida. Eu esperava viver na pobreza? Esperava que minha vida não tivesse importância, já que eu dependia da ajuda da assistência social e tinha crescido na familia de um alcoólatra? Esperava que meu valor não fosse muito grande, por causa do lugar em que eu morava ou de quem eram meus pais?

Ruth me ensinou a deslocar o foco da minha atenção e da minha intenção, saindo da minha identidade de menino pobre de um lar negligenciado para aquilo que minha mente julgava querer mais. Dinheiro. Rolex. Sucesso. Porsche. Médico. Eram esses os meus novos familiares - as imagens que gravei nas células e sinapses do meu córtex pré- frontal. O córtex pré- frontal controla nossas funções executivas - planejamento, resolução de problemas, julgamento, raciocínio, memória, tomada de decisões. Ele nos ajuda a regular nossas respostas emocionais, a superar hábitos nocivos ou a fazer escolhas sensatas.

Ele é o lugar do cérebro que nos permite examinar nossa própria mente - aquilo que Ruth já começara a me ensinar a fazer. É também onde aprendemos a sentir empatia e ligação com os outros. Ruth me ensinou as habilidades para obter o que eu desejasse na vida, e concentrei minha atenção em tornar manifesto o futuro com que sonhava. Eu não fazia ideia de nenhum dos detalhes que me ajudariam a entrar no bacharelado e no curso de medicina - na verdade, estava totalmente alheio a todo esse processo. Mas o estabelecimento da intenção tem um tipo de mágica próprio e, a partir daquele verão na loja de mágicas, o universo sempre pareceu conspirar para me colocar onde eu precisava estar.

É claro que, em matéria de sobreviver ao ensino médio, o universo não se manifestou muito. Em retrospectiva, vejo que eu deveria ter situado mais a minha intenção em ser bem-sucedido na escola, deveria ter me concentrado numa coisa de cada vez, e não apenas em como seria a vidade quando eu finalmente fosse alguém.




Ainda visualizo o que desejo na vida. Vej o que quero em minha cabeça, por uma janela que, muitas vezes, não é muito transparente, mas acredito com absoluta fé que, quando chegar a hora certa, ela será de uma transparência cristalina. Aprendi que esse processo de tornar algo manifesto nem sempre é linear e nem sempre funciona na linha cronológica que desejo ou que faz sentido. Mas tudo que visualizo costuma tornar-se realidade e, quando isso não acontece, existe claramente uma boa razão para não acontecer. Ao longo das décadas, aprendi que ter fé no resultado é muito diferente de me apegar ao resultado; e aprendi, da maneira mais difícil, que é preciso ter cuidado com o que queremos que se manifeste. Também aprendi que há um imenso poder contido em nossas intenções.

Nunca acreditei num Ser Supremo poderoso que decida quem tem e quem não tem valor, realizando desejos e oncedendo dá divas em consonância com isso. Vi muitas vezes a arbitrariedade de um mundo em que pessoas boníssimas e maravilhosas deparam com uma morte súbita e dolorosa, e também vi prosperarem indivíduos fundamentalmente impiedosos e até maus. Mas creio, sim, que temos a capacidade de transformar a energia contida em cada um de nós. Todos podemos modificar nosso cérebro, nossas percepções, nossas reações e até nosso destino.

Foi o que aprendi com a mágica de Ruth. Podemos usar a energia da mente e a energia do coração para criar tudo que quisermos. Isso ainda exige de mim um trabalho árduo. Ainda exige esforço e intenção consistentes. Não tomei uma pílula mágica e me tornei neurocirurgião da noite para o dia. Mas aprendi na adolescência que tinha a possibilidade de escolher como usar minha mente e como reagir aos acontecimentos à minha volta e, em fases posteriores da vida, a de escolher como u ar meu coração para tocar os que me cercavam. Não creio que exista uma lei da física apta a descrever de modo adequado a força e o poder criados quando os usamos; no entanto sempre me lembrarei da primeira lei da termodinâmica que tivemos de decorar na aula d ciências no dia em que recebi um conjunto de formulário de pedido de inscrição na universidade.

A energia não pode ser criada nem destruída. Entretanto, pode mudar de forma e pode fluir de um lugar para outro. É essa a dádiva que cada um de nós recebe.

A energia do universo está dentro de nós. Está na poeira estelar que compõe cada um de nós. Em todo o poder de criação. Todo o poder de expansão. Todo esse poder lindo, simples e sincronizado. A energia pode fluir de um lugar para outro. E de uma pessoa para outra. Ruth me ensinou minha primeira lição, e a vida me ensinou as posteriores. Passei muitos anos provando a realidade daquilo que aprendi na loja de mágicas, mas, em última análise, aquilo se reduz a um único fato simples e misterioso. Podemos estudar todos os diferentes mistérios do cérebro, porém seu maior mistério é sua capacidade de se transformar e de se modificar.

Há ocasiões em que eu gostaria de possuir uma tomografia do meu cérebro aos 12 anos, depois aos 18, e após cada verdade dura que meu cérebro teve que aprender ao longo da vida. Parti para a faculdade com um cérebro modificado, e diferentes estudos têm provado que a meditação concentrada, como a que Ruth me ensinou, aumenta a capacidade de concentração, de memorização e de estudo de ideias complexas. Será que eu teria feito faculdade de medicina se não tivesse conhecido Ruth? É provável que não. Teria conseguido fazê-la com sucesso se, inconscientemente, não houvesse preparado meu cérebro para os rigores acadêmicos que me trariam os 12 anos seguintes? Com certeza, não.

Quando nosso cérebro muda, nós mudamos. Essa é uma verdade comprovada pela ciência. Uma verdade ainda maior, porém, é que, quando nosso coração muda, tudo mu a. E essa mudança se dá não apenas em nossa maneira de ver o mundo, mas também no modo como o mundo nos vê. E em como o mundo reage a nós.





Estima-se que quase 15 milhões de americanos tenham tido uma experiência de quase morte, ou EQM, como é comumente chamada. Em 2001, a revista Lancet divulgou um estudo que mostrou que 12% a 18% dos pacientes que sofreram paradas cardíacas ou cessação da respiração teriam passado por experiências de quase morte, seguindo-se a problemas de saúde que envolveram pressão baixa, má oxigenação do cérebro ou prejuízo global do funcionamento cerebral por trauma ou doença. As descrições dessas experiências costumam incluir: sensação de estar fora do próprio corpo, flutuando; recordações da própria vida; impressão de estar com entes queridos já falecidos ou de ouvir a voz deles; sentimento de calor humano e amor incondicional; e, muitas vezes, sensação de deslizar por um rio ou passar por um túnel, sendo atraído por uma luz. Descrições desse tipo também foram relatadas em múltiplas culturas ao longo da história.

Na República de Platão encontramos a `História de Er` na qual um soldado morre, não entra em decomposição, como se descobre, e desperta em sua pira fúnebre, doze dias depois. Ele faz uma descrição semelhante de sua experiência de quase morte (ou morte), que inclui vários dos elementos comuns associados às EQMs modernas. Houve quem afirmasse que o célebre quadro Ascensão ao Empireo, de Hieronymus Bosch, do século XVI, é a representação de uma experiência de quase morte, com seu túnel que leva a uma luz brilhante e com sombras e formas que representariam o mundo além da vida terrestre. Há também a história do almirante inglês Beaufort, que descreveu sua experiência de quase morte em 1795, e a do físico americano A. S. Wiltse, que em 1889 descreveu sua experiência similar durante um surto de febre tifoide. Cada uma dessas narrativas tem vários componentes associados à EQM clássica - ver o próprio corpo de uma certa distância, ter a sensação de flutuar, ver entes queridos e avançar em direção a uma luz branca.

No fim do século XIX, o epistemólogo e psicólogo francês Victor Egger usou o termo francês expérience de mort imminente (experiência de morte iminente) para descrever um fenômeno semelhante, manifestado em alpinistas que `viram` sua vida passar diante de seus olhos ao despencarem no que acreditavam que seria sua morte. Mais recentemente, em 1968, Celia Green publicou uma análise de quatrocentos relatos de experiências extracorpóreas que levaram as pessoas a se perguntar se a consciência poderia existir fora do corpo, e, em 1975, o psiquiatra Raymond Moody publicou um livro sobre essas experiências e cunhou a expressão experiência de quase morte, despertando o interesse dos cientistas por esse fenômeno, antes descrito apenas no âmbito da religião, da filosofia e da metafísica.

Muitas descrições incluem símbolos religiosos, como anjos e figuras como Jesus ou Maomé. Em geral, tais símbolos se correlacionam com a fé ou com as convicções religiosas da pessoa. Para muitos, tais experiências transformam a vida. Indivíduos ateus relatam muitos dos elementos comuns das EQMs vivenciadas por fiéis. Um dos relatos mais famosos é o do filósofo britânico, e ateu confesso, Sir A. J. Ayer, autor de Linguagem, verdade e lógica, que em 1988 quase morreu engasgado durante uma refeição. Passado o evento, ele teria afirmado: «Minhas experiências enfraqueceram não a minha crença em que não existe vida após a morte, mas minha atitude inflexível em relação a essa crença: Nas EQMs registra00 por ateus, muitos destes não relatam impacto algum em suas convicções, ao passo que, para outros, há uma conversão espiritual.

Graças ao trabalho de Moody e outros) há um interesse crescente entre os cientistas pelo estudo desse fenômeno. Além disso, sabemos que experiências similares podem ser artificialmente induzidas por medicamentos como o anestésico cetamina e por algumas drogas psicodélicas. Elas podem ser desencadeadas, no cérebro, por estimulação elétrica do lobo temporal ou do hipocampo. Podem ocorrer quando há redução dos níveis de oxigenação cerebral por diminuição do fluxo sanguíneo no cérebro (como é experimentado por pilotos de aviões de caça) e até durante a hiperventilação. É interessante assinalar que, embora as experiências induzidas tenham componentes das EQMs, com exceção das drogas psicodélicas, elas não são tipicamente associadas a transformações ou a reações modificadoras da vida nos indivíduos que as vivenciam. Será de fato o risco da morte (ou a interpretação dada dessa maneira à situação por uma parte do cérebro) que constitui, nessas ocasiões, o denominador comum que lhes confere um caráter transformador?

A psicóloga Susan Blackmore postulou que a experiência da passagem por um túnel em direção a uma luz brilhante é resultado do ruído neural crescente que ocorre à medida que mais e mais neurônios começam a disparar, em resposta à falta de oxigênio no cérebro. Ela também sugere que a sensação de serenidade e paz se deve a uma descarga maciça de endorfina, proveniente do estresse do acontecimento. Num estudo recente, o fisiologista Jimo Borjigin, usando um modelo de hipóxia em roedores, demonstrou um pico transitório de oscilações sincrônicas na faixa de ondas gama, que foram globais e sumamente coerentes, ocorrendo até trinta segundos depois de uma parada cardíaca. Em outras palavras, cérebros de ratos privados de oxigênio, que tiveram uma parada cardíaca e vieram a morrer, revelaram um nível aumentado de consciência depois da morte.

Essas oscilações gama são observadas na consciência de vigília e nos estados intensificados de consciência associados à meditação, bem como durante o sono REM (sigla, em inglês, de movimento rápido dos olhos), que é o período do sono em que as lembranças se consolidam e se fortalecem. Há diversos eventos neurofisiológicos bem documentados que ocorrem durante as EQMs e que podem acontecer durante outros tipos de eventos estressores cerebrais ou ser replicados mediante a utilização de uma variedade de métodos não associados a uma EQM.

Como tantas coisas na vida, nossas crenças são uma manifestação de nossas experiências de vida. E nosso cérebro é a consolidação dessas experiências. Mas o que dizer das experiências do coração? Ainda mais interessante para mim do que a ciência, as pesquisas e as indagações sobre vida além da morte, decorrentes de uma experiência de quase morte, é o fio comum que perpassa essas experiências. Por que tantos avançam em direção à luz, ao calor humano e ao amor? Talvez o que experimentamos nas EQMs sejam os maiores anseios do coração: sermos amados incondicionalmente; sermos bem-vindos; sentirmos o calor do lar e da família; fazermos parte de algo.

Não sei o que aconteceu comigo depois daquele acidente de carro, quando minha pressão sanguínea caiu de maneira vertiginosa; e acabei percebendo que isso não tinha importância. Eu não precisava solucionar nem explicar aquela vivência. Talvez eu tenha morrido, talvez não.

Simplesmente não sei.

O que sei com certeza é que morri muitas vezes nesta vida. Como menino perdido e sem esperança, morri numa loja de mágicas. O jovem que tinha vergonha e pavor do pai, aquele que o esmurrou e ficou com o sangue dele nas mãos, morreu no dia em que partiu para a universidade. E, embora eu não o soubesse na ocasião do meu acidente, o neurocirurgião egoísta e arrogante em que me transformaria também acabaria sofrendo sua morte. Podemos morrer mil vezes nesta vida, e essa é uma das maiores dádivas de estarmos vivos. Naquela noite, o que morreu em mim foi a crença em que a mágica de Ruth me tornara invencível e a convicção de que eu estava sozinho no mundo.

Naquela hora, senti o calor de uma luz e um sentimento de integração com o universo. Fui envolvido pelo amor e, embora isso não tenha transformado minhas crenças religiosas, instrumentou minha convicção absoluta de que a pessoa que somos hoje não tem que ser a que seremos amanhã e de que estamos ligados a tudo e a todos. Acordei naquele leito hospitalar e me lembrei de quanto eu havia caminhado desde os tempos daquela bicicleta Sting-Ray laranja e de um verão passado numa loja de mágicas. O que eu não soube na ocasião foi quanto ainda me restava avançar. Ver Ruth na margem daquele rio e sentir o amor e a ligação com tanta gente talvez tenha sido um sinal de que eu estava me desviando demais do que ela havia tentado me ensinar. Mas ainda se passariam muitos outros anos e muitos outros erros dolorosos até que viesse a me dar conta disso.




Percebi não saber ao certo o que estava procurando, ou mesmo por que tinha ido a Lancaster. Ruth não morava lá. Era de Ohio, se é que ainda estava viva. Eu nem ao menos sabia seu sobrenome. Voltei andando para o carro com a sensação de estar deixando escapar algo importante. Para que tinha ido lá? O que estava realmente procurando?

Meu caderno de anotações descansava no banco do carona. Apanhei-o e comecei a ler minhas notas sobre Ruth. Bússola do coração. Isso estava sublinhado. Eu não me lembrava de ter visto o grifo mais cedo, nesse mesmo dia, mas não devia tê-lo notado. Também havia estrelinhas que eu desenhara com tinta vermelha dos dois lados da expressão. Folheei o resto das anotações. Não havia mais nada sublinhado nem outras estrelas. Por que aquela expressão? Fechei os olhos e procurei relembrar quando Ruth a havia usado. Tinha sido no dia da briga. O único dia em que eu chegara atrasado. O dia em que ela me falara de abrir meu coração. Lembrei-me de mim mesmo, sentado na cadeira da sala dosfundos, do cheiro do lugar, e então vieram os fragmentos dispersos, como uma letra de música ou um poema.

Todos na vida passamos por situações que causam dor.
Eu as chamo de feridas do coração.
Se você as ignorar, elas não ficarão curadas.
Às vezes, porém, é ao ser ferido que nosso coração se abre.
Não raro, são as feridas do coração que nos dão a maior oportunidade de crescer.
As situações difíceis.
Dádiva mágica.

Abri os olhos. Lembrei-me do momento em que tinha ido embora naquele dia - Ruth me acompanhara até o estacionamento.

- Sabe para que serve uma bússola? - perguntou ela.

- É claro. Ela diz em que direção a pessoa deve ir.

- O seu coração é uma bússola, e é a sua maior dádiva, Jim. Se um dia você estiver perdido, é só abri-lo, que ele sempre o guiará na direção certa.

Li a outra frase nã margem superior: O que você acha que quer nem sempr o melhor para você. Ruth me avisara. Dissera para eu abrir o coração antes de visualizar o que queria e para usar esse poder com sensatez. Não foi o que fiz. Será que havia entendido tudo errado? Pensei que queria dinheiro. A verdade, porém, é que eu ganhara dinheiro, mas ele nunca tinha sido o bastante para me fazer sentir que possuía o suficiente. Foi como se o espetáculo de mágica que eu havia iniciado muitos unos antes parasse nesse momento. Eu simplesmente havia continuado a fazer um truque atrás do outro para que o show se perpetuasse, os aplausos não cessassem e os milhões fossem se empilhando. E eu continuava tão sozinho, amedrontado e perdido quanto no dia em que conhecera Ruth. Para ser inteiramente franco, havia uma parte de mim que se sentia completamente livre, agora que o dinheiro havia desaparecido.

Nenhum truque de mágica dura para sempre.




O cérebro tem seus mistérios, mas o coração guarda segredos que eu estava decidido a desvendar. Minha busca iniciada na loja de mágicas me levara a uma viagem interior, mas minha jornada não chegara ao fim. Eu sabia que precisava viajar mais. A mente gosta de dividir e de nos manter separados. Ela nos ensina a nos compararmos, a nos diferenciarmos, a pegarmos o que é nosso porque a oferta é limitada. O coração, porém, quer nos interligar, quer que compartilhemos. Ele deseja nos mostrar que não há diferenças e que, em última análise, somos todos iguais. O coração tem uma inteligência própria e, se aprendermos com ele, saberemos que só conservamos aquilo que possuímos ao doá-lo. Se quisermos ser felizes, façamos os outros felizes. Se quisermos amor, temos que dar amor. Se quisermos alegria, precisamos deixar os outros alegres. Se quisermos perdão, temos que perdoar. Se quisermos paz, temos que criá-la no mundo que nos cerca.

Se quisermos que nossas feridas se curem, temos que curar as feridas alheias. Estava na hora de eu voltar a me concentrar em ser médico.

O que Ruth chamava de bússola do coração é, na verdade, uma forma de comunicação que existe entre o coração e o cérebro, através do nervo vago. O que as pesquisas têm mostrado é que o coração envia muito mais sinais ao cérebro do que os que o cérebro envia ao coração - e, embora os sistemas cognitivo e afetivo do corpo sejam inteligentes, há muito mais conexões nervosas indo do coração para o cérebro do que fazendo o caminho inverso. Nossos pensamentos e sentimentos podem ser potentes, mas uma emoção forte é capaz de silenciar um pensamento, ao passo que raras vezes saímos de uma emoção forte por meio de um pensamento.

Na verdade, são as emoções mais fortes que desencadeiam a ruminação ou a reflexão incessante. Separamos a mente, racional, do coração, relacional, mas, no fim das contas, mente e coração são parte de uma mesma inteligência unificada. A rede nervosa que cerca o coração é uma parte essencial de nosso pensamento e de nosso raciocínio. Nossa felicidade individual e nosso bem-estar coletivo dependem da integração e colaboração entre oração e mente. treinamento que Ruth me deu ajudaria a integrar os dois cérebros no meu corpo - o cérebro-mente e o cérebro-coração -, mas, durante décadas, eu havia ignorado a inteligência do coração. Pensara que poderia usar meu cérebro para sair da pobreza, conduzir-me ao sucesso e me dar valor, mas, no cômputo final, era o coração que me conferia meu verdadeiro valor.

O cérebro sabe muita coisa, mas a simples verdade é que ele sabe muito mais quando se junta ao coração.

A atenção plena e a visualização, nomes vigentes para o que Ruth me ensinou, são técnicas maravilhosas para obter serenidade, eliminar distrações e fazer uma viagem interior. Podem aumentar a concentração e nos ajudam a tomar decisões mais depressa, porém, sem sabedoria e discernimento (a abertura do coração), as técnicas podem resultar em egocentrismo, narcisismo e isolamento. Nossa jornada não deve ser apenas para dentro de nós mesmos, precisa acontecer também para fora, para a criação de vínculos.

Quando nos voltamos para dentro e nosso coração está aberto, nós nos conectamos com o coração, e este nos obriga a nos voltarmos para fora e a nos ligarmos aos outros. Nossa Jornada é de transcendência, não de interminável autorreflexão. Há uma razão para os corretores de ações estarem usando técnicas de meditação: elas os ajudam não só a se manterem mais concentrados, mas - infelizmente, em alguns casos - mais insensíveis. Foi sobre isso que Ruth me alertou, antes de me ensinar a visualizar coisas. Sim, podemos criar tudo que quisermos, mas só a inteligência do coração é capaz de nos dizer o que vale a pena criar.

Há uma epidemia de solidão, ansiedade e depressão no mundo, sobretudo no Ocidente. Há um empobrecimento do espírito e dos vínculos entre as pessoas. Estudos demonstram que 25% dos americanos não têm ninguém de quem se sintam íntimos o bastante para compartilhar um problema. Isso significa que uma em cada quatro pessoas que você vê ou conhece no dia de hoje não tem com quem falar, e essa falta de ligação afeta sua saúde. Fomos feitos para criar vínculos sociais - evoluímos para cooperar e para nos ligarmos uns aos outros - e, quando isso é eliminado, adoecemos. As pesquisas mostram que quanto maiores são nossos contatos sociais, mais longa é nossa vida e mais depressa nos recuperamos ao adoecer.

De fato, o isolamento e a solidão submetem - nos a um risco maior de doenças precoces e de morte do que o tabagismo. Os vínculos sociais autênticos surtem um efeito profundo em nossa saúde mental - ultrapassam até o valor do exercício e do peso corporal ideal para nossa saúde física. Fazem com que nos sintamos bem. O vínculo social ativa os mesmos centros de recompensa cerebrais que são ativados quando as pessoas usam drogas, ingerem bebidas alcoólicas ou comem chocolate. Em outras palavras, adoecemos sozinhos e nos curamos juntos.

Ao abrir mão da última riqueza que me restava, aprendi a lição que eu fora jovem demais para compreender durante o período em que convivi com Ruth. O grand finale da mágica que ela me ensinou era a suprema compreensão de que a única maneira de realmente mudar e transformar a vida para melhor é transformar e mudar a vida dos outros.

Ruth me ensinou as técnicas e práticas, mas, ao dedicar tempo para me ensinar, ao me oferecer seu tempo e sua atenção, ela me ensinou a maior de todas as mágicas e a mais real que existe: o poder da compaixão para curar não apenas cada ferida do nosso coração, mas também o coração dos que nos cercam.

É essa a maior dádiva, e também a maior mágica.





O coração bate cem mil vezes por dia, bombeando o equivalente a uns 7.500 livros de sangue por um intrincado sistema de vasos sanguíneos que, se estendido, cobriria 96 mil quilômetros - mais que o dobro da circunferência da Terra. Os antigos egípcios acreditavam que o coração - o ib - sobrevivia à morte e, na vida além dela, julgava o humano que o havia possuído. A antiga palavra egípcia correspondente a "felicidade" é awt-ib, cujo significado literal é "largueza do coração". A palavra correspondente a "infelicidade" era ab-ib, que significa "coração truncado ou alienado"". Em muitas culturas, tanto antigas quanto modernas, o coração é visto como a sede da alma e o lugar secreto em que habita o espírito. Ao lermos a história de uma criança perdida, nosso coração pode doer.

Quando o amor termina, ele pode ter a sensação de se partir, e às vezes se parte. Quando nos sentimos rejeitados, envergonhados ou esquecidos, nosso coração pode sentir um aperto e uma constrição, como se se fechasse sobre si mesmo e diminuísse. Sob pressão, porém, seja de um amor intenso, seja de um sofrimento intenso, nosso coração pode rachar-se e nunca mais voltar a ser o mesmo. Isso se dá não apenas num sentido metafórico, mas de fato. Na verdade, existe uma cardiopatia chamada "síndrome do coraçao partido"

Não foi a perda do meu dinheiro que partiu meu coração - eu me senti libertado ao perder a fortuna que havia buscado por tanto tempo. Foi a pressão de mantê-lo fechado por tanto tempo que finalmente o levou a se abrir. Ruth dissera: "O que você pensa que deseja nem sempre é o melhor para você." Eu estivera perseguindo o objetivo errado, e um coração ignorado por tempo demais sempre se faz sentir.

Também me lembrei de que prometi a Ruth que um dia ensinaria essa mágica a outras pessoas. Não sabia exatamente como isso aconteceria, mas foi esse, todas as noites, o foco da minha prática de visualização. Ora eu me via no meu jaleco branco, abraçando um paciente ou um familiar que sofria, ora me via num palco; e em outras ocasiões me imaginava conversando com grandes filósofos e líderes espirituais. Embora eu fosse, e continue a ser, ateu, pensava com frequência em minha experiência com Ruth e no que experimentei após o acidente de automóvel, e achava que podia ter a mente aberta, ser livre de dogmas e, ainda assim, saber que há mais coisas nesta vida do que sei explicar. De muitas maneiras, este também foi um presente dela: a aceitação de que não preciso de respostas absolutas.

Sinto que cada um de nós está ligado aos demais; quando olho para outra pessoa, vejo a mim mesmo. Vejo minhas fraquezas, minhas falhas e minha fragilidade. Vejo o poder do espírito humano e o poder do universo. No meu âmago, sei que é o amor a cola que nos une a todos. O Dalai Lama disse, certa vez: "Minha religião é a bondade". E essa tornou-se minha religião também.

Sempre me importei com os outros e, como médico, importo-me profundamente com meus pacientes. Mas a prática de abrir o coração de modo intencional pode causar dor. Uma dor tão intensa que, às vezes, é quase insuportável. Houve épocas em que a dor não me permitia estar presente, ou pelo menos não tão presente quanto eu gostaria. Mas, ao abrir de verdade o coração como Ruth me ensinou, mudei minha maneira de reagir à dor. Eu não precisava fugir dela; precisava estar com ela. E foi estar com ela que me permitiu ligar-me a mim mesmo e estabelecer vínculos verdadeiros com os outros. Minhas relações com meus pacientes se modificaram. Reservo mais tempo para escutar e procuro abrir o coração para cada um deles. Escuto seus sintomas, depois escuto seu coração - não com o estetoscópio, mas com meu próprio coração.

O estetoscópio foi inventado porque, em 1816, um médico francês sentiu-se constrangido demais para encostar o ouvido no peito de uma paciente e auscultar seu coração (como se fazia na época) e, em vez disso, enrolou 24 folhas de papel para formar um cone e criar alguma distância entre os dois. Creio que essa distância entre médico e paciente só fez crescer com o tempo. Aprendi que o simples ato de escutar meus pacientes, de lhes dar meu tempo, minha atenção e meu foco, levava-os a se sentirem melhor. Eu deixava cada um contar sua história e reconhecia suas lutas, suas realizações e seu sofrimento. E, em muitos casos, isso aliviava mais sua dor do que qualquer medicamento ou cirurgia que eu pudesse lhes oferecer. Até hoje digo aos meus alunos e residentes que, embora a neurocirurgia exija uma quantidade imensa de tecnologia e equipamentos sofisticados, meu maior sucesso como neurocirurgião resulta de cuidar de meus pacientes com o coração aberto e estar presente ao lado deles.

Outra mudança notável foi que, em todo lugar a que ia, eu via pessoas iguaizinhas a mim. O balconista da mercearia. O faxineiro que limpava o hospital, tarde da noite. A mulher que ficava parada junto ao semáforo, segurando um cartaz para ganhar dinheiro. O sujeito que passava dirigindo sua Ferrari em excesso de velocidade. E cada um deles tinha uma história, assim como eu. Cada um trilhava um caminho. Cada um lutava e sofria em certos momentos. Desde a pessoa que menos tinha até a que mais possuía, todas eram iguais a mim.

Comecei a deixar de lado a história que vinha definindo minha vida. Eu havia criado uma identidade a partir da pobreza e, enquanto a carregasse comigo, por mais riqueza que viesse a acumular, sempre viveria na pobreza. Na minha prática cotidiana, abri o coração para meus pais e encontrei perdão para eles. Abri o coração para o menino que eu tinha sido e encontrei compaixão. Abri o coração para todos os erros que cometi, e para todas as tolices que fiz para tentar provar meu valor ao mundo, e encontrei a humildade. E, ao fazer isso, compreendi que eu não era o único no mundo a ter sentido fome. Não era o único no mundo a ter sentido medo. Não era o único a ter conhecido a solidão ou experimentado a sensação de estar só e de ser diferente. Abri o coração e descobri que meu coração tinha a capacidade de estabelecer vínculos com todos os outros corações que encontrava.

Era exaustivo, belo e estranho.
Tudo ao mesmo tempo.




Caminhar pela vida com o coração aberto pode doer, mas não tanto quanto passar pela vida com o coração fechado. Eu ainda lutava para descobrir como conciliar a parte de mim que tinha que ser um neurocirurgião desprendido com a parte de mim que tinha o compromisso de se vincular aos outros.

Peguei-me pensando em Ruth com frequêncía e desejando poder lhe perguntar, como adulto, o mesmo que havia perguntado quando menino: Por quê? O que a fizera me estender a mão, quando tantos não o faziam? Ruth não era rica e tinha seus próprios problemas na vida, mas Conservava o coração aberto; viu alguém carente e fez alguma coisa a respeito. Isso me fazia pensar: Por que os que têm tanto fazem tão pouco para ajudar os que lutam? E como é que algumas pessoas, nada possuindo em termos de bens materiais, ainda oferecem tudo que têm aos menos afortunados? Por que alguns indivíduos, como Ruth, fazem o possível e o impossível para ajudar, enquanto outros dão as costas a quem sofre?

Não se tratava de vãs reflexões filosóficas. Comecei a me dedicar a pesquisas científicas rigorosas e a colaborar com estudiosos que vinham explorando áreas semelhantes. Eu havia explorado os mistérios do cérebro, e estava na hora de dedicar igual rigor acadêmico e sólidos conhecimentos de ciência à exploração dos segredos do coração.

O que aprendi de lá para cá foi que a compaixão é um instinto, talvez o mais inato que existe em nós. Pesquisas recentes mostram que até um animal é capaz de se empenhar e arcar com custos tremendos para ajudar um ser de sua espécie - ou mesmo de outra espécie - que esteja sofrendo. Os macacos cuidam uns dos outros quando se machucam, os filhotes de coruja alimentam seus companheiros de ninho menos afortunados com pedacinhos do próprio alimento, um golfinho chegou a ajudar a salvar uma baleia jubarte encalhada na praia. Nós, humanos, somos ainda mais instintivamente compassivos; nosso cérebro é pré-programado pelo desejo de ajudar o outro. Vemos esse desejo de ajudar em crianças muito pequenas, que mal estão aprendendo a andar.

Há uma parte do nosso cérebro, chamada substância cinzenta central ou periaquedutal, cujas conexões com o córtex orbito­frontal são responsáveis, em grande parte, por alimentar o comportamento. Quando vemos pessoas sentindo dor ou sofrendo, essa parte do cérebro é ativada, o que significa que somos programados para alimentar e ajudar os outros quando eles estão necessitados. Da mesma forma, ao darmos algo aos outros, os centros de prazer e recompensa do cérebro são ativados - mais do que quando alguém nos dá algo. E, quando vemos alguém agir com bondade ou ser prestativo, somos levados a agir com mais compaixão.

Muitos fazem uma interpretação equivocada de Darwin, entendendo que a sobrevivência dos mais aptos significa a sobrevivência dos mais fortes e implacáveis, quando, na verdade, é a sobrevivência dos mais generosos e cooperativos que assegura a sobrevivência da espécie a longo prazo. Evoluímos para cooperar, alimentar e criar nossos jovens dependentes, para prosperar juntos e em benefício de todos.

Chorei por June naquele dia, assim como chorei por outros pacientes desde então, embora nunca tenha voltado a ter uma cirurgia interrompida por tamanha emoção. Não há vergonha em nos importarmos nem em sentirmos a dor de outra pessoa. Isso é bonito e, a meu ver, é a razão de estarmos todos juntos nesta vida.

Enquanto escrevia este livro, descobri que Ruth havia morrido de um câncer de mama em 1979, e por isso, embora nunca venha a sabê-lo ao certo, creio que ela teria ficado orgulhosa de meu empenho em abrir meu coração e os corações dos outros. Acho que ela entenderia meu desejo de provar cientificamente o que ela sabia por intuição. Quando o coração e o cérebro trabalham em colaboração, somos mais felizes, mais saudáveis e, de modo automático, expressamos amor, bondade e desvelo uns pelos outros. Eu sabia disso de forma intuitiva, mas precisava corroborá-lo no campo científico. Foi essa a motivação para começar a pesquisar a compaixão e o altruísmo. Eu queria compreender a evolução não apenas de como desenvolvemos esses comportamentos, mas também de como eles afetam o cérebro e, em última análise, nossa saúde. É claro que havia indícios preliminares que mostravam efeitos positivos significativos. Minha meta era reunir um pequeno grupo de pesquisadores que já estivessem trabalhando nessa área. No nível pessoal, eu já conhecia o efeito, mas me perguntava se poderíamos criar maneiras de melhorar a vida das pessoas através desse conhecimento. Será que eu poderia contribuir?




No fim, os três fizeram incríveis contribuições monetárias. O que havia começado como um projeto informal foi então formalizado pelo decano da faculdade de medicina, com respaldo do diretor do Instituto de Neurociências e do chefe do meu departamento, como Centro para Pesquisa e Educação em Compaixão e Altruísmo, ou CCARE (sigla em inglês para Center for Compassion and Altruism Research and Education). E. de modo igualmente extraordinário, Jinpa, que, além de ser ex-monge, tem um doutorado pela Universidade de Cambridge, acabou por se tornar um grande amigo e a passar uma semana por mês comigo, nos três anos seguintes, ajudando-me a criar o que é hoje o CCARE. Ao mesmo tempo, com colegas da psicologia, ele ajudou a elaborar um programa de treinamento para cultivo da compaixão, algo que já foi ensinado a milhares de pessoas e cujos efeitos continuamos a pesquisar. Também treinamos professores que levaram o poder desse treinamento a muitas partes do mundo e que decerto o levarão a muitas mais ao longo dos anos.

Desde sua fundação, o CCARE é reconhecido como pioneiro e líder no campo das pesquisas sobre compaixão e altruísmo e promove o efeito profundo que tais condutas podem ter na vida dos indivíduos, na educação, nos negócios, na assistência à saúde, na justiça social e no governo civil. Esperamos que venha a servir como um farol, iluminando e demonstrando o poder de cada indivíduo de afetar as vidas alheias e mostrando também, empiricamente, o valor desses comportamentos em termos de bem estar e longevidade.

Tive uma experiência pessoal com o poder que um indivíduo tem de afetar a vida de outro. É minha esperança que o CCARE inspire outras pessoas a conhecerem o mesmo tipo de poder. O CCARE é um modo de realizar o que Ruth me pediu para fazer - ensinar sua mágica a outras pessoas. Orientar os demais médicos é outro.

 

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