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A arte da ficção é prestar atenção a seus próprio pensamentos

Revista Época, No 959 (31/10/2016)
 

(trecho da entrevista com IAN MCEWAN)

O narrador do novo romance do escritor inglês Ian McEwan, Enclausurado, se contorce para se esquivar do pênis do rival de seu pai. Ele é um feto, uma espécie de Hamlet intrauterino, que ouve as maquinações diabólicas de sua mãe e seu tio, que, entre um orgasmo e outro, planejam o assassinato de seu pai. O Hamlet de McEwan lamenta o destino do Reino Unido, cada vez mais dividido e distante da Europa.

De onde tirou a ideia de um livro narrado por um feto?

Nunca consigo explicar como eu tenho essas ideias. Do nada, a primeira frase me veio à mente: "Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher". Não me perguntei de onde veio essa frase, mas ela me pareceu cheia de possibilidades. Comecei a me perguntar quem estava falando: só podia ser um feto em estado avançado, já que ele estava de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Passei a deixá-lo falar. Naquela época, eu estava lendo Hamlet e, rapidamente, pensei que esse feto talvez fosse Hamlet ou mesmo Shakespeare! Escrevi os primeiros parágrafos e, de repente, toda a personalidade dele estava diante de mim: altamente instruído, curioso sobre o mundo, ansioso com a trama de assassinato que ele ouve.

Sempre me perguntam de onde vêm as ideias e eu sou sempre tentado a responder: "Eu vou a sebos, procuro por livros que estão fora de catálogo há muitos ano e simplesmente roubo suas ideias!" (risos).

A arte da ficção é prestar atenção a seus próprio pensamentos. O cérebro tem uma atividade aleatória, e nós não decidimos o que pensamos. Não acredito em livre­arbítrio, mas acredito que seja uma ficção necessária.


Por que o livre-arbítrio é uma ficção necessária?

O livre-arbítrio é filosoficamente insustentável, mas é uma noção necessária. Se tentássemos organizar uma sociedade onde ninguém tivesse livre-arbítrio, teríamos de perdoar assassinos. O caminho do meio é reconhecer que, mesmo sem livre-arbítrio, temos responsabilidades e devemos enfrentar as consequências de nossas ações. Se matarmos nossos pais, devemos ir para a cadeia.


Apesar das turbulências políticas, o senhor é um otimista. A crença na ciência é a razão de seu otimismo?

Não me interesso pela ciência, mas pela curiosidade. E pela melhor maneira de descrever o mundo natural. Por muito tempo, essa foi tarefa dos sacerdotes, mas eles estavam errados sobre praticamente tudo: o cosmos, a evolução, tudo.

Hoje, se estamos curiosos quanto a alguma coisa, procuramos os cientistas, não os sacerdotes. Vivemos numa época maravilhosa, em que cientistas escrevem livros para leigos. É muito fácil satisfazer nossa curiosidade. Criamos um sistema de pensamento que é maior que os indivíduos, que tenta desconsiderar a subjetividade humana. É como um navio sempre a corrigir seu curso. Em outras palavras: aceita a possibilidade do erro. É um belo projeto intelectual. Devemos honrar o projeto humano, que permitiu avanços incríveis.


Também é otimista quanto ao futuro do romance?

Nos anos 1970, as revistas literárias estavam cheias de artigos sobre a morte do romance. Mas o romance é um modo de investigação de nossa condição humana. E nós ainda não achamos outra forma artística que possa mostrar o interior da mente de uma pessoa de modo tão sensualmente detalhado. Não encontramos isso nos filmes, no teatro ou na ópera. Sempre há pessoas que vão sair de casa numa noite chuvosa para conversar sobre livros. O romance vai sobreviver.
 

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