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Relação entre Matemática e Poder de Concentração

Fora de Série- Outliers, Malcolm Gladwell, 2008, Editora Sextante, pag 223
 
Alguns anos atrás, Alan Schoenfeld, professor de matemática de Berkeley, gravou um vídeo de uma mulher chamada Renee enquanto ela tentava solucionar um problema de matemática.

Renee tinha cerca de 25 anos, longos cabelos pretos e óculos prateados redondos. No vídeo, ela está interagindo com um programa de software projetado para ensinar álgebra. Na tela há os eixos y e x. O programa pede ao usuário que digite um conjunto de coordenadas e, em seguida, desenha uma linha reta na tela. Assim, se alguém digita 5 no eixo y e 5 no eixo x, o computador faz isto:

FIGURA

A esta altura, estou certo de que uma vaga lembrança das aulas de álgebra está surgindo em sua cabeça. Mas fique tranqüilo: você não precisa se recordar de nada dessa disciplina para entender o significado do exemplo de Renee. Na verdade, ao ler as falas dela mais adiante, não se concentre no que ela está dizendo, e sim em como e por que está falando daquele jeito.

O objetivo do programa de computador criado por Schoenfeld era ensinar aos estudantes a calcular a inclinação de uma reta. A inclinação, como você deve se lembrar (ou, mais precisamente, como você talvez não se lembre -esse foi o meu caso) é a razão entre o eixo y (o das ordenadas) e o eixo x (o das abscissas). A inclinação da reta em nosso exemplo é 1, uma vez que y =5 e x =5.

Renee está diante do teclado tentando descobrir quais números digitar para que o computador desenhe uma reta vertical diretamente sobreposta ao eixo y. Ora, quem se recorda da matemática do colégio sabe que isso é impossível. Uma linha vertical possui uma inclinação indefinida. A sua altura é infinita: pode ser qualquer número no eixo y a partir de zero. Já sua distância no eixo x é zero. Infinito dividido por zero não é um número.

Mas Renee não percebe que está diante de uma missão impossível. Ela está dominada pelo que Schoenfeld chama de "equívoco glorioso". O que faz com que Schoenfeld goste de exibir esse vídeo é o fato de ele ser uma demonstração perfeita de como o equívoco foi solucionado.

Renee era enfermeira. Nunca tinha se interessado por matemática no passado. De alguma maneira, porém, conseguira acesso ao software e estava gostando.

-Agora quero traçar uma reta com essa fórmula, paralela ao eixo y -ela começa. Schoenfeld está sentado ao seu lado. Ansiosa, Renee olha para ele.

-Há cinco anos não faço esse tipo de coisa.

Ela começa a brincar com o programa, digitando diferentes números.

-Se eu mudar a inclinação desta maneira ... menos um... Agora quero fazer com que a linha fique reta. À medida que ela digita números, a linha na tela vai se modificando.

-Nossa! Isso não vai dar certo.

Ela parece intrigada.

-O que você está tentando fazer? -Schoenfeld pergunta.

-Quero traçar uma linha reta paralela ao eixo y. O que preciso fazer aqui? Acho que tenho que mudar isto um pouquinho.

-Ela aponta para o local do número do eixo y.

-Descobri uma coisa. Quando passo de um para dois, a mudança é grande. Mas, para subir mais, tenho que ficar mudando de número.

Esse é o equívoco glorioso de Renee. Ela observou que, quanto mais alta a coordenada do eixo y, mais inclinada fica a reta. Assim, conclui que a solução para obter uma linha vertical é tornar a coordenada do eixo y bem elevada.

-Acho que 12 ou até 13 vai resolver. Talvez chegue até 15. Renee franze a testa. Ela e Schoenfeld ficam indo e voltando entre os números. Ela faz perguntas. Ele a orienta, educadamente, na direção certa. Ela continua tentando uma abordagem após a outra.

Em determinado momento, Renee digita 20. A reta fica um pouco mais inclinada.

FIGURA

Ela digita 40. A inclinação se acentua.

FIGURA

-Vejo que há uma relação aqui. Mas não consigo entender por quê. E se eu tentar 80? Se 40 me leva até à metade, 80 deveria me levar até o eixo y. Vamos ver o que acontece.

Ela digita 80. A linha fica ainda mais inclinada, porém ainda não está totalmente vertical.

-Ah! É infinito, não é? Nunca vou chegar lá. Renee está perto de descobrir. No entanto, retorna ao equívoco original em seguida.

-Do que eu preciso? De 100? Cada vez que dobro o número, chego a meio caminho do eixo y. Só que nunca o alcanço ...

Ela digita 100.

FIGURA

-Estou mais perto. Mas ainda não consegui. Ela começa a pensar em voz alta. É óbvio que está perto de descobrir algo.

-Bem, eu sabia isso ... eu sabia. Existe uma relação entre a altura e a distância. Ainda estou confusa sobre qual é ...

Ela faz uma pausa, apertando os olhos enquanto olha para a tela.

-Estou ficando confusa. Falta um décimo do caminho para chegar lá. Mas não quero que seja ...

Aí ela descobre.

-Ah! É qualquer altura e distância zero. É qualquer número dividido por zero!

-Seu rosto se ilumina.

-Uma linha reta vertical é qualquer coisa dividida por zero, e isso é um número indefinido. Certo! Agora entendo. A inclinação de uma reta vertical é indefinida. Ah! Agora faz sentido. Não vou me esquecer disso.

No decorrer de sua carreira, Schoenfeld filmou muitos estudantes tentando solucionar problemas matemáticos. Mas o vídeo de Renee é um de seus favoritos pela beleza com que ilustra o que ele considera o segredo do aprendizado da matemática.

Passam-se 22 minutos desde o momento em que ela começa a lidar com o programa de computador e o instante em que diz:

"Ah! Agora faz sentido." Um longo tempo. "Isso é matemática da oitava série", observa Schoenfeld. "Se eu puser um aluno de oitava série na mesma situação de Renee, acredito que, após as primeiras tentativas, ele dirá: "Não entendi, dá pra você explicar?""

Certa vez ele perguntou a um grupo de estudantes do nível médio por quanto tempo eles ficavam tentando resolver um problema do dever de casa até concluírem que era difícil
demais. Suas respostas variaram de 30 segundos a 5 minutos, e a média foi de dois minutos.

Mas Renee persiste. Ela faz tentativas. Retorna às mesmas questões várias vezes. Pensa em voz alta. Vai em frente, não desiste. Tem uma vaga idéia de que há algo errado em sua teoria sobre como traçar uma linha vertical e só pára quando está absolutamente segura de que acertou.

A matemática não é algo natural para Renee. Ela não tem tanta facilidade assim para entender conceitos abstratos como "inclinação indefinida". Schoenfeld, porém, ficou impressionado com seu comportamento.

"Existe uma vontade de entender que a impele", ele diz.

"Ela não aceitaria um simples "Sim, você tem razão" superficial e depois iria embora. Renee não é assim. E isso é incomum."

Schoenfe1d recoloca o vídeo e aponta para um momento em que Renee se mostra genuinamente surpresa com algo na tela.

"Veja", ele diz. "Primeiro ela hesita e depois reage com surpresa. Muitos estudantes não perceberiam aquele detalhe. Mas Renee pensou: "Isso não se encaixa no meu raciocínio. Não estou entendendo. É uma coisa importante. Quero uma explicação." E, quando por fim, entende aquilo, ela diz: "Sim, isso se encaiXa."

Em Berkeley, Schoenfeld ministra um curso sobre resolução de problemas cujo objetivo é, em suas palavras, fazer com que os estudantes se libertem dos hábitos relativos à matemática que adquiriram antes de ingressar na universidade. "Escolho um problema cuja solução desconheço. Digo aos alunos: "Vocês terão um teste para fazer em casa. O prazo é de duas semanas.

Conheço seus hábitos. Ninguém fará nada na primeira semana, só na seguinte. Por isso, aviso agora: caso dediquem apenas uma semana a essa questão, não conseguirão solucioná-la. Mas, se começarem a trabalhar no dia em que eu entregar o exame, se sentirão frustrados. Virão falar comigo: "É impossível." Minha orientação será que continuem tentando. Na segunda semana, constatarão que estão progredindo bastante."

Às vezes pensamos que ser bom em matemática é uma capacidade inata. A pessoa a tem ou não. Para Schoenfeld, porém, mais do que uma capacidade, trata-se de uma atitude. Domina a matemática quem se dispõe a tentar. É o que ele procura ensinar aos alunos. O sucesso é resultado da persistência, obstinação e disposição em se esforçar por 22 minutos para entender algo que levaria a maioria das pessoas a desistir após 30 segundos.

Se reunirmos vários indivíduos como Renee numa sala de aula e oferecermos espaço e tempo para que eles explorem a matemática, chegaremos longe. Imagine um país onde a obstinação de Renee não seja uma exceção, e sim um traço cultural tão profundamente arraigado quanto a cultura da honra no Cumberland Plateau. Essa seria uma nação exímia em matemática.

Como você viu no capítulo 1, a cada quatro anos, um grupo de educadores internacionais realiza o TIMSS (testes abrangentes de matemática e ciências) com alunos do nível fundamental em todo o mundo. Seu objetivo é obter uma comparação entre os níveis educacionais dos diferentes países.

Ao se submeterem aos exames do TIMSS, os estudantes têm que responder a um questionário. Nessa lista, há todo tipo de pergunta -qual é o nível educacional dos pais, o que acham da matemática, como são seus amigos, e assim por diante. Não é um exercício banal. São cerca de 120 questões. Na verdade, é tão maçante e trabalhoso que muitos alunos deixam de 10 a 20 delas sem resposta.

Agora vamos à parte interessante. Constata-se que o número de itens respondidos no questionário do TIMSS varia de país para país. É possível classificar as nações participantes pelo número de perguntas a que seus alunos respondem.

O que você acha que acontecerá se compararmos a classificação pelo número de perguntas respondidas com a classificação pelas notas? Elas são praticamente iguais. Em outras palavras, países cujos alunos se dispõem a permanecer concentrados por um bom tempo respondendo a cada questão de um questionário imenso são os mesmos cujos estudantes se saem melhor na resolução de problemas matemáticos.

A pessoa que identificou esse fato é um pesquisador educacional da Universidade da Pensilvânia chamado Erling Boe. E ele fez essa descoberta por acaso. "Aquilo surgiu do nada", conta. Boe nem sequer conseguiu publicar essa constatação numa revista científica, porque, segundo ele, é estranha demais. Tenha em mente o seguinte: Boe não está dizendo que a capacidade de concluir o questionário e a de se destacar nos testes de matemática estão relacionadas. Ele afirma que elas são iguais. Comparando as duas classificações, vemos que são idênticas.

Veja isso de outro ângulo. Imagine que, a cada ano, seja realizada uma olimpíada de matemática em alguma bela cidade e que cada país participe do evento com uma equipe de mil alunos da oitava série. O argumento de Boe é que poderíamos prever exatamente a classificação final de cada país na competição sem que os alunos respondessem a nenhuma pergunta de matemática. Para isso, bastaria que estabelecêssemos uma tarefa destinada a medir o esforço que os estudantes estariam dispostos a fazer.

Na verdade, nem mesmo isso seria necessário. Conseguiríamos identificar quais países são melhores em matemática apenas examinando quais culturas nacionais dão mais ênfase ao esforço e ao trabalho duro.

Assim, que países lideram as duas listas? A resposta não irá surpreendê-lo: Cingapura, Coréia do Sul, China (Taiwan), Hong Kong e Japão. O que eles têm em comum, é claro, é o fato de serem culturas moldadas pela tradição da rizicultura irrigada e do trabalho significativo.

Trata-se do tipo de lugar onde, por centenas de anos, camponeses paupérrimos, labutando em seus arrozais mil horas por ano, diziam uns aos outros coisas como: "Ninguém que em 360 dias do ano acorde antes do amanhecer deixa de enriquecer a família."
 

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